Cena de qualquer filme, estacionamento
semi-vazio num fim de tarde meio azul, meio alaranjado, céu pegando fogo e o
Shades of Deep Purple já está em
Help.
Carro sim, carro não formando um desenho com lacunas a serem preenchidas, mas é feriado.
O estacionamento está fechado, e lá está ela com um aviso de
ticket vencido. Multas e juros pelo atraso.
Arquitetando um plano para sair, mas parece sem jeito. Destruindo as cancelas, que, sem energia não se movimentam ao seu toque? Com a bateria pelas tabelas, precisando pegar no tranco?
E agora, mulher, pra que tu foi deixar essa memória aí, estacionada, cheia de falhas, cheia de saudade dos antigos caminhos? De andar sem ninguém, sem gasolina e a pé. Aquela vida solitária tão plena, o embrulho no estômago ao
pieguismo. Das meditações, você e você, não que agora seja diferente, mas
cadê sua tão valorizada suficiência? Desvirtuada, procurando causar acasos?
Um velho autor me disse uma vez que o valor da
coincidência é inversamente
proporcional à sua
probabilidade, ou algo assim. Adormeceu no volante?
Está se dando conta do tempo misturando tudo, como aqueles restos da festa de ontem? Sem sabor fresco, sem noção do que tem ali, sem divisão no prato.
E a conta do estacionamento?
Cada vez que você tenta sair dessa inércia, cada dia que passa é somente um, mas são horas, minutos, relâmpagos e você é cobrada pelo que não muda, seus juros são por não fazer nada e sua multa é somente pelo excesso de baixa velocidade. É tão bonito assim, vendo de fora, e percebendo que o
objeto inflacionado é só algo
abstrato. E são vários, acumulados, dívida enorme.
São tempos difíceis para desafortunados, minha cara.