domingo, 6 de dezembro de 2015

não precisa ter cuidado com meus óculos

continue sonhando com bangalôs
ou indo à sua praça circular onde ninguém frequenta,
o seu prédio de arrumação de ideias
e o quintal de floresta e rio
que eu forçarei à visita

continue falando sobre seus casos

dirija em direção a qualquer canto que constantemente transites

continue não sabendo guardar segredos
antecipe-me

mas sobretudo continue falando e dirigindo num espaço teu
desviando dos buracos velhos conhecidos
infringindo leis de trânsito em conversões proibidas
e expondo todos seus casos
saindo rapidamente da garagem estreita da casa de sua mãe

perambule pelo que te é comum
manuseie o que te é comum, seja seu controle de videogame,
chaves e senhas de consultório

em contrapartida, ofereço-te meus indícios
em um amassar de óculos, prova cabal
em um borrão de pele úmida nas lentes,
em esquecimentos incógnitos pelo quarto
e em músicas e poemas dos outros

sobretudo músicas e poemas dos outros
onde pode haver um espaço de salvação constituído por todos os indícios
de todos os tempos
de lágrimas com sabores diferentes das de desordem ou exaustão

sobre o que não me é possível escrever
onde sempre te encontro
I
considerar toda as possibilidades
do ser e fazer humano
é consagrar-se precocemente
de qualquer jeito e de quase tal
toda contingência

fazer-se de objetiva sua memória
e rememora
rememora
remói
resiste o mundo, então


*
feito olhar os objetos iluminados e não a luz
a perseguição de todas as nuvens que se desfazem hora ou outra
imaginar-se entre o canavial que beira a estrada pro oeste
sob um número de estrelas sempre maior
ao que se tinha conhecimento
e ali descansar

II
o legado da vida mundana é poder olhar
e finalmente se fazer, se pertencer
vem, assim, difícil as palavras
pois se se pode olhar, não se fala
tampouco escreve

milan kundera diz que é escrever,
engana-se: a imortalidade é só ver.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

sentir a permissão para alcançar uma emoção
coisa há muito esquecida
nas paixões e seus ímpetos de objetos quebrados,
como os vasos lançados das janelas,
acender o círio d'um santo
e rezar longas preces a essas paixões descuidadas:

o que entocam os poetas no cano que leva o fundo
dos seus vasos de banheiros sujos
depois de cervejas, cigarros e som?


sentir a permissão de jogar o corpo na estrada, ir até...
voltar a si e negar o arremesso

mas só depois do desvario
de quando sílvia me fala

terça-feira, 29 de setembro de 2015

contorno

dentre as principais coisas observáveis
com tamanho agrado estão:
o céu, a estrada vazia, os olhos dos meus cachorros
e o desenho do seu perfil

[lembro-me no teatro
como por minutos esqueci de dos amores y un bicho
e senti pela minha coluna todo o júbilo e lisonja
quando vi de tão perto o seu perfil]

investigava-o para chegar a isso
esse esquecimento dos tempos de guerras:
eu olhava todas as suas metades

era para isso, para encontrar todas as coisas observáveis com agrado
que eu flanava por todas as suas metades
pelas veias, por um ombro

mas, diferente do cavalheiro de shalott:
[talvez ache, também, que gosta de se reajustar]
half is not enough

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

pé de fixo 2

os barômetros na estrada
ferramentas únicas de guia do caminho
fazem como a principal lógica humana
de orientação espacial:
à direita, a ida/ à esquerda, a volta

o vento, a única coisa que vem do céu
que pesa sobre a terra
principal elemento de congregação de outros dois - terra/fogo

[queimar a cana e o lixo toda temporada
faz da força brutal da caatinga
o único sobrevivente aos pés de ficus]

toda a cidade desmoronará

de pé, apenas, o ficus 

de pé, acompanha a jurema

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

"não me esqueça"

n'alguma boa temporada
ficaste em silêncio, qual jogada de mestre
e o impulso do empréstimo às palavras
o apogeu do consolo
viu-se descuidado

[hoje, atendi o carteiro no portão de casa: 
multa de trânsito

hábil lobo, prendeu-me na rua]

*
o carteiro diz: fechei o portão para que seus bichos não fujam
enquanto eu assinava o papel

[hábil lobo, por isso o admiro
como esperou esse tempo e,

com a saliva quente
decide minha memória: 
não me esqueça, 
eu também sou você

não me esqueça,
eu também sou você, tânato, 

não me esqueça]

vi-me, portanto, nua, recordada e sem medo da morte

meus bichos nunca fugirão.

domingo, 20 de setembro de 2015

pé de fixo

sob toda pele, há sede

essas peles 
pensam no carcará
no muro numa calçada do oeste

pensam nos animais procurando uma sombra
sobre as árvores desfolhadas

também a calçada oca da busca pela água
das raízes do pé de ficus

[e o gavião-carcará na vigília de mais um bicho quase-morto de fome
cair sobre a terra
sobre a mesma sombra que não existe:
amor fati]

a pele que seca, racha, endurece.

essas raízes grandes exploradoras 
e essa sede não passa

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

para todas as crianças que fogem das guerras, sejam civis, diárias contra a fome, contra a sociedade que engole, etc

os pequenos pés das crianças
como balançam!

crianças nunca alcançam o chão
quando sentadas à mesa
e agitam seus pequenos pés
em tédio e expectativa

com curtos e frágeis passos,
as crianças nunca podem ir muito longe

no máximo, à praia

então, uma criança, na praia, brinca de pequenos zigue-zagues
de costas para o mar

desce-lhe o cansaço, certa hora
então, os pés das crianças balançam vagarosos no colo do guarda
ceifam o ar sem escolha, tédio ou expectativa

nunca alcançarão o chão

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

o mito do velho oeste

esta sujeira da BR que entra
pelas janelas mesmo fechadas
e pelo nariz, boca, pior que o fumo

qual fuligem que fica a resvalar como se pensa
e quando cobre dessa cor negra a mesa os cabelos que caem

quando se vive em um quarto
com doze metros quadrados
com paredes cor de fome

o rodo, a vassoura e as roupas no pé da parede
a parede.

onde estão os livros que em busca do tempo perdido
nunca li e sei de cor?

la prisionnière, não mais

fugitiva

terça-feira, 18 de agosto de 2015

nunca concordei com a metáfora do anoitecer e morte
como nunca entendi outras coisas humanas

a falsa inspiração, sutura inflamada
o aviso dos que buscam uma ideia por dia

[ninguém pôde ver aquelas ondas
na ponta do morcego perto da meia-noite

e com o que se pareciam:
desfibrilador em colo,
preâmbulo do espirro e

o convite à dança]

nunca poderei concordar 
com a noite ser a morte

a menos que seja
quando ilegitimada

pois, quando desce a faixa néon
anunciando pôr-do-sol ou nuvem HAARP
e o breu se instaura
não se veem as cruzes na beira da estrada

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

"É doce morrer no mar"

"Como se houvesse ondas de escuridão no ar, a noite avançava, abrindo casas, colinas, árvores, como as ondas que rodeiam os flancos de um navio naufragado." (Virgínia Woolf, em 'As ondas')

quando a escuridão encobre uma ideia
com os panos que já nos abafaram
o som que as ondas fazem ao quebrarem na costa
é aquela hipnose por mesmerismo

a cura ergue-se transformada
dos fluidos naturais da água das marés
pelos fluidos cósmicos, essa viagem charlatã
até a tua ideia
e pensas em religiões africanas
em metáforas de caymmi
e na odisseia
então


*
tudo o que foi aberto pela escuridão
a deixa escorrer, como o girino quando criança num charco próximo
preto, arteiro e veloz
foge da mão

quando vês, como tudo finda
nu, claro, como amanhece
outro dia

segunda-feira, 20 de julho de 2015

o que se passa nas tuas lembranças
das tuas coisas
como as imagino daqui

como através de um sufrágio,
de quando encomendei homenagens
ou uma canga imitando toalha de mesa
e baloiçando ao vento de uma tarde
cheia de sintomas de chuva

como tudo o que vacila

todas as vacinas que deixei de tomar enquanto criança

como a imagino daqui, ameaça direta, dileta
como os livros que posso vir a deixar de ler

carrapato dos animais de minha casa
mato que nasce entre os paralelepípedos
tuas mulheres na cadeira de dragão
e depois
comendo tudo

e continua

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Quero morrer num dia breve
Quero morrer num dia azul
Quero morrer na América do Sul. 
(Rodrigo Campos)

párias da vida, uni-vos

na nossa américa do sul,
para ser um pária,
não precisa ir longe

disseram-me que para unir
precisamos engolir a solidão
e isolar tal pedaço de tecido
da nossa mente 

encontrem-me lá:

em qualquer canto que produza sombra
faia, mas nossa:
mangueira ou pé de jambo

terça-feira, 7 de julho de 2015

as urgências vivas se apresentam
na madeira compensada da porta
quando a observo, ao acordar vertiginoso, tentar respirar

no ferro de passar roupas
rangido da mesa, cheiro de amaciante evaporado
no uniforme cinza do meu pai

num desonrado passeio no pensar,
esquecendo o que foi dito
no reticente cuspe retórico
"quando se morre de acidente [...]
[...]"

essas urgências vivem
nesse silêncio-alívio
no entortar da boca,
levantar de ombros

onde me retiro

sexta-feira, 26 de junho de 2015

bacamarte

em uma cidade na parahyba
existem nuvens dispostas de forma não usual nos idos deste mês
tal qual a música progressiva nos anos 70
com uma coincidência de nomes
dos lugares e conjuntos
em tentativa de narrar todas as letras naquele mesmo céu pequeno
sobre a cidade pequena,
como quando se buscam as diferenças
pela arte de esculpir coronhas
das armas dos grandes vilões do cinema

as nuvens:
estranhas como os arranjos de depois do fim
longas como o último entardecer
nos pastos onde pode haver recordação d'algum país de língua castelhana
apenas brevemente, bem brevemente

nunca tive ciência d'um bar nesta cidade da parahyba
nem de nenhuma dos arredores
em que se pudesse iniciar uma briga,
puxar o gatilho

[aquele espaço entre o ar e a coronha esculpida
a coronha engordurada pelo o que se come com a mão
a coronha arranhada pelo botão da capa que a guarda]

puxar o gatilho para cima
até as nuvens do céu dessa cidade
seja pelo grito ou disparo

um menino com estilingue

tão somente pelo susto às nuvens
não aos que passam

quarta-feira, 17 de junho de 2015

nênia para um cantor de folk

não se pode ser coerente, meu amor
quando se vive escorado assim
nessa odisseia de canções arquivadas
nestas pastas e costas de histórias comuns

violo diariamente meu ouvido em busca da surdez
abomino as ceras que protegem, forço as paredes do conduto externo até chegar próximo ao tímpano, junto com o martelo, bigorna e estribo: ossos tão fortes quanto meus fios de cabelo

ouço diariamente sons que me nascem
um constante rompimento da bolsa 
o som do líquido amniótico leve como o correr natural de um rio escasso junto com o vento, que é o mesmo vento sobre uma camada fina de areia cujos grãos, juntos, são como as células da derme humana no entre-pernas feminino e existem grãos de diversas cores como há também todas as tonalidades de pele

não se pode deixar de violar o ouvido ao pensar desta forma
crendo que um dia pode esquecer de todos os sons já conhecidos

gostaria de esquecer somente o que o pianista do shopping tenta fazer, ou o latido do meu cão sempre preso como as pessoas na caverna de platão, ou estouro dos amplificadores da caixa de som de um velho aparelho 

não se pode ser coerente, meu amor
quando se vive acossado pela música feita
do bater da sola de um sapato elegante no chão de madeira de um cantor folk

como eu vivo, comovido

terça-feira, 16 de junho de 2015

obviedades

na ida, toda a prerrogativa
de como cresce o que tem no escuro de dentro
quando se ouve algo que,
mesmo sem nenhum desígnio,
reproduz aquela prosódia da pena

volto-me, ainda na ida,
sob qualquer tenção de livrar na luz

o carro morre, os pedais erram
0. não há o auto pilot

sonho com o que atormenta
como penso em cada movimento:

1. não há disfarce, tudo é desejo consciente

2. não há outra vida, sonho com o que me atormenta porque quero

3. não há por que assentir tão facilmente

quando sonho, acrescenta-se a essa cobiça toda
uma avença, um contrato assinado

não o quebro, porque toda a vida humana é contratual
homo ludens, toda vida humana é convenção,
negócio, pacto
toda vida humana é uma técnica de fugir da verdade
como o riso num VHS de qualquer

[parto]

de qualquer comédia


terça-feira, 2 de junho de 2015

lendo virginia woolf em meu quarto

leio virginia woolf em meu quarto
como quem escreve cartas suicidas
entre as cartas para os familiares
leio virginia woolf em meu quarto
e dedico fortes ofensas
a ela: go fuck yourself [preservo seu idioma para que me entenda] 
leio-a em meu quarto, onde encontro uma cópia
de sua carta
escrita por mim, para lembrar-me de sua tragédia e de suas vozes 

eu apenas escuto as ondas, mas
meus bolsos logo se esvaziam: eu não sei nadar

[escreveria a alguém chamado bern,
ante a circunstância]

sábado, 30 de maio de 2015

eu sei: qualquer um de nós
poderia pensar
sobre uma claridade
que emana da lógica mais pura
os algoritmos da onda
criada do nada

eu sei: qualquer um de nós
poderia entender o prazer
de um ladrão de bancos
que profana túmulos
quinzenalmente
atrás de umas obturações de ouro

[o que eu sei dessa tarde: panos úmidos
sobre minhas alergias, necroses
panos mornos sobre as dores de garganta
panos secos dentro de bolsos com lapelas nas calças cinzas de oxford -- cortada, após enfestada, no quarto dos fundos de uma pequena vila de desterrados modernos
panos de grande extensão para cobrirem qualquer móvel da poeira]

essa tarde de ventos fundados
pelo grande vazio da palavra que sempre se descuida do poema

eu sei: qualquer um de nós
poderia passar por isso

terça-feira, 12 de maio de 2015

ocorrência[zzz] da vida mundana

*
uma vulnerabilidade congênita que todos os dançarinos contemporâneos padecem em não conhecer até então os limites/ as possibilidades dos músculos do seu corpo e quando percebem todas esses caminhos de movimento, reproduzem-os todos ao mesmo tempo num espetáculo de exorcismo do demônio da arte

*
precisava vos dizer como são leves tais estouros e experimentos musculares, como é leve a sensação de quase-morte [as 21 gramas] onde perdemos aos poucos os sentidos: a audição por último -- ouvimos tudo o que não ouvimos em vida nesse momento -- a visão primeiro -- não precisamos mais ver tantos rostos [aquele alívio de agnes em saber que lá ninguém tem  rosto]

*
uma mãe dizendo ao pé da cama, dizendo depois. eu quero que ela faça isso depois. a voz de uma mãe pelo depois quando mães nunca querem depois

*
tarde da noite, quando as mães querem que se pense se faça se durma, quando visito [ou tento] visitar a única drogaria aberta da minha cidade e não posso entrar, pois, de tão lotada, não há um só espaço para mim -- todas as doenças dançam à noite nos corpos -- todos os demônios das solidões dos sadios saem atrás de um alívio na única farmácia aberta vinte-e-quatro horas pela noite...

*
o silêncio e as solidões das histórias dos livros [tudo tão batido, repetido, desde os contos de fadas: o meu preferido sempre foi a rapunzel, solitária] se espalham pelos cômodos deste corpo todo evadido, onde nem mesmo minh'alma se encontra, pois só penso distante e dizem que é onde a alma está, lá onde se pensa. então, nunca esteve em mim, mas a de quem está?

*
cogitei comemorar meu aniversário em uma rua de barcelona [ou em alguma por roma, como há pouco soube], dançando uma semana para são bartolomeu. ou em qualquer outra cidade europeia com esse sem-fim de construções iguais. mas tenho essa predileção por barcelona por ser uma cidade sem esquinas/encruzilhadas, pois a cidade é feita para se perder, mas nunca para fazer trabalhos, visto a falta de encruzilhadas, como eu mesma me perdi e achava que estava às beiras do mar mediterrâneo enquanto ainda estava a duas quadras da carrer do meu hotel

*
gaudí, quando projetou meio mundo de prédios estranhos em barcelona, imitando ondas de um mar que só poderia existir para lá da estratosfera, estava apenas querendo agradar olga e vasha do livro [lembro dos nomes e das origens], nativas do além-estratosfera, meninas que se interessavam, tal quanto eu, pelo vazio que há para além das famílias, fora de casa, todo o vazio

*
sentados ao redor da mesa vazia, sobre imagens de santos e sobre aquele crucifixo que sempre mais atormenta que protege, escutamos:
"nasci em meio a brocas e lagartixas
falo sobre a ressurreição
e certifico os outros ao redor disso
há vidas
espírito e alma
e um pé de ingazeira
resgatado de uma entidade da memória
onde me arrebentei com um cavalo
e entortei de vez meu braço
que mede um metro e quatro"

*
um camelo deitado, exausto, numa beira-mar de Tânger esperando para alimentar um Delírio de alguém que pensa atravessar um deserto, que pensa ter sede, criando as tais sombras inconvenientes do deserto, mas diante daquele não-oásis que é o mar mediterrâneo

*
(...)

domingo, 19 de abril de 2015

Eunice quem chama

das coincidências de Eunice: ontem, enquanto esperava no hall de um apartamento desconhecido, para um desconhecido me receber e para que eu lhe pudesse falar algo, me encontrei com uma mulher. ela não me olhou nos olhos, estava entretida com algo e havia um mal estar quanto ao recinto ser muito pequeno. eu não podia fazer muito, a não ser olhar para aquele aparelho que ela tinha nas mãos [o entretenimento, as luzes, aquele imã misterioso]. então, no minuto que se sucedeu, ouço um toque. lembrou-me de todos os toques que já havia ouvido, que já tinha silenciado ou que já tinha respondido. o toque do celular do meu pai, o toque antigo do celular da minha melhor amiga, o antigo toque do meu próprio celular. então, com essa atração natural que esses aparelhos nos impõem, não pude deixar de olhar aquele nome que tomava aquela tela de 6". o nome que anunciava uma catarse, uma coisa que eu ainda não conhecia desde que conheci aquele nome. quem chamava a mulher ao meu lado, o óbvio, mas esse mistério terrível que a narração tem que passar até o clímax. rio, mas, ah, me digam vocês: quem? quem telefonava para aquela mulher com aquela sacola imensa que dividia um recinto minúsculo comigo por corridos dois minutos. era. ela mesma. a raiz, a louca, a vilã da história. era Eunice e, quando li isso, meus olhos marejaram, quis arrancar daquela mão que nada entendia sobre quem estava a chamar. e atender. arrancar daquela mão de quem não pôde me olhar nos olhos nem por um segundo. e atender. arrancar daquela mão apenas para ajudá-la a carregar melhor aquela sacola imensa que já a feria. e simplesmente atender. eu tinha boas intenções ao pensar em arrancar aquilo daquela mão. e finalmente poder falar com ela. falar com Eunice, perguntar onde ela estava, quando viria para um vinho, quando se enraizaria nos meus cães, nas minhas plantas que iam chegar. perguntar para Eunice o que se deu de Beatrice depois das tardes cantarolando baez na américa do sul. e onde eu poderia estar para ver a próxima vítima, para assistir como se daria, etc, ou só para poder ouvir aquela voz que iria reincidir uma pergunta sobre quem é? quem é? quem é? alô está mudo vou desligar e ligar novamente, tchau

sobre [ ]

sobre um homem sem nome que conheci na rua de comércio, onde fervia de tudo, e serviam-se de açougues moscas e motores de polimento. era o que ele fazia antes, quando não o vi dessa forma: andava sobre as ruas sempre com um bivaque nas costas, pronto para dormir onde bem entendesse. bandidos que aplicam golpes em maternidades, mães recém-abortárias, idosos ou internos de qualquer hospital não me emocionam como o homem com aquele negócio nas costas. ele era como um circo inteiro: como sempre tem um circo entalado no meio da periferia com os melhores palhaços, onde rimos à vera, sem medo, numa forma se delírio, maior forma de delírio, [inocentemente os que se dopam de placebo ou qualquer outra coisa acreditam ser delírio]. onde os animais sofrem maus tratos, mas são apenas animais, todos pensam, ninguém quer saber daqueles animais magros [eles têm de ser magros para serem bem escondidos, é proibido, ora mais, mas tudo pelo riso e encantamento] -- onde há também O delírio dos animais, este tão grandioso tão lindo tão [apenas isso poderia me emocionar mais que o homem]. enquanto a alguns metros o caos se instala na casa de alguém que passou a vida amolando tesouras e alicates ou trocando pulseiras e baterias de relógios, onde vive O delírio. como vive O delírio aquela pessoa que diz, lê tanto e não entende, enquanto ouve, quem é gita gogoia? foi na casa desse amolador, quando o mesmo já não estava, o sem nome, que vi e entendi mais coisas que musil escreveu sobre o sem-qualidades. esse é o sem-nome, todos os nomes, todas as idas, todas os mandruvás que destroem o jardim que seus animais sempre desejaram destruir, mas ficaram presos atrás das grades de acesso ao quintal. depois do último alicate amolado, ele saiu com aquela sacola desengonçada nas costas pronto pra dormir em qualquer lugar, morrer em qualquer lugar, os sem-nome-dos-lugares e os sem-nome-dos-tempos, todos as ausências que também me assemelham 

segunda-feira, 13 de abril de 2015

"Quem diz dor diz segredo"
Alan Pauls
a s. m.

veste-se dessa sua presença
de lua nova -- expectativa
d'um mero devir de pranto
traduzindo-se num só corpo
(o projeto frágil de não poder consigo)

pode ser essa tua presença
(ameaça -- voz grave -- puro conceito de sentir demais)

ogiva

lembra-me dos meus piores temores
em comum

e entendo-me com essa lua nova
de trinta dias noutro canto
como a pele às justas peças

fundos sulcos

se à minha queda tu não vens

"poetisa, por que não sobes?
the downstairs means nothing"

sábado, 28 de março de 2015

cont.: Eunice


quando a gente morre, costuma pensar que somos algo, um quê desumano, como plantas solo areia animal pó. Pablo Neruda achava que se parecia com uma anta amazônica, mas Eunice como todo bom indiano, cor amarronzada, nariz avantajado, Eunice pensava que era raiz de alguma planta, então Eunice se enraizava, sem raiva, em cada pessoa nova que eu poderia escrever ou que escrevessem, Eunice estava em tudo, Eunice era o próprio eu, o próprio dizer e o próprio devir. em doses pequenas, certamente, afinal apesar de serem raízes quando morrem, os indianos nunca foram um exemplar da maior estatura da humanidade para ser tal raiz que enraíza tanto em tudo. e isso tem ligação. vikas uppal se enraizou tanto quanto sua altura permitiu, quer dizer, muito, em escritos de autores indianos que o ocidente não conhece e músicos [pois foi pra ele todas as músicas, e não aos outros que foram medidos pelo livro dos recordes] — mas ele era exceção. voltando ao tal nome-raiz, nasceu, uma vez, em Buenos Aires uma Eunice. [era Beatrice e veja que sutil Eunice foi nesse enraizamento, sutil e fatal, a menina carregaria esse seu ice ate o dia da passagem pro mundo desumano]. então Eunice agia feito as pessoas silenciosas, delicadamente e brutalmente, a menina, coitadinha, sentia o peito como um dínamo diariamente, aquela tensão. para explicar melhor, essa tensão, essa energia potencial de quando vemos um animal asqueroso com asas, ou uma pistola na mão de alguma criança, como do pobre menino bubber que quase matou baby só por que queria ver aquela bolsinha rosa, tão graciosa, e o vestidinho de perto e quis fazer pow, fez pow de verdade com a pistola que era maior que ele na brincadeira, na história de mccullers. esse era o coração de Beatrice. ela cresceu e, com atraso, casou, queria ter tido uma penca de filhos, mas depois de muito tentarem [Eunice ria de querer morrer, mas já estava morta, com mais uma vez a ilusão do humano-ser], descobriram que a pobrecita era estéril, mais uma de Eunice, que já está virando a vilã dessa história, só enraíza para trazer secura, mas isso também faz muito sentido visto que a raiz é de feitio de absorção, mas aguardem, ela também pode fazer bem a quem se enraíza. Beatrice pensava nessa sua esterilidade como um castigo, foi menina má, que xingava a todos por detrás da porta, não acreditava em deus e ainda por cima lia alguns malditos, aquelas malditas  histórias todas de solidão, de embriaguez e de como o nada é, às vezes, tudo o que se tem. então, entre divagações sobre o nada, Eunice ou Beatrice [como hamlet, havia um monólogo imaginário onde Eunice assumia as rédeas na maior parte do tempo, e Beatrice calava], via faces em azulejos encardidos, vidros embaçados com vapor d'água quente, todas as farsas. pensava na lei de lavoisier, que cara esperto!, patentear a lei que rege todas as coisas da vida, não só a conservação de massas, mas de vidas, de gramáticas, de pensamentos. nada surge do nada, Beatrice varava horas pensando neste paradoxo, nada se cria. pode-se pensar no nada como uma dêixis, mas é claro, ora, é a sumidade das dêixis, que força a se pensar a fundo, onde encontro esse nada fora do meu corpo, do meu discurso, onde ele está, o tal nada. o origo, essas coisas, ego-hic-nunc. algumas vezes ela cansava e, quando cansava, apenas cantarolava joan baez "dadme el silencio, el agua, la esperanza, dadme la lucha, el hierro, los volcanos, apegadme los cuerpos como imanes, acudid a mi venas y a mi boca, hablad por mis palavras e mi sangre"

segunda-feira, 23 de março de 2015

retratos de eunice e cândida

*  
eu me chamo Eunice, nome da vó de alguns amigos, nome que diz o que sou mais que o que faço: eunuco. sou fratura do mundo, mas a que carrega o karma do nome da vitoriosa hebraica, mãe de não-sei-quem do novo-testamento, musa dos protestantes. mas eunuco. nasci na índia, óbvio, e um dia ouvi que um jesus tinha falado de nós,  "Porque há eunucos que nasceram assim; e há eunucos que pelos homens foram feitos tais; e outros há que a si mesmos se fizeram eunucos por causa do reino dos céus. Quem pode aceitar isso, aceite-o.sou o feito pelos homens, esse mesmo, que dó. mas eu sou Eunice, anti-mãe, o alento-poço de um autor americano, que lia escondida pela madrugada fingindo ler o acaranga sutra [aqui eu posso produzir um riso mental em prol da santa ignorância]. quando tratar Eunice como uma outra, estarei demonstrando alguns ensinamentos de escritores que querem falar de si e sempre nomeiam seus personagens como seres alheios, como se não fossem eles próprios, [aqui também consigo sorrir com a capacidade infinita de ilusão do ser-humano]. Eunice tinha esse nome dado por seus pais que não sabiam o que significava, mas era o nome da vó ou da mãe de seus colegas. ela sempre teve essa coisa da maternidade, principalmente depois da orquidectomia, assumida mãe dos testículos jogados no lixo. Eunice era uma grande pensadora, de ascese com a vida e tinha constantemente aquelas ideias de carinho para com o dia final, as bênçãos dos pais aos filhos. usava umas roupas demais folgadas, mas isso dava a ela um ar de sábio, um ar de buda. ela conseguia rir, também, ao pensar em como as palavras quando graficamente parecidas a influenciavam, ela amava as orquídeas, aquelas principalmente que soltavam um cheiro de chocolate enquanto houvesse sol, ultimamente fazia muito sol boa parte do dia então era cheiro de chocolate por toda a casa. Eunice gostava de refletir sobre os homens e sobre os sonhos que tinha e das histórias que os homens inventavam para sair mais cedo do trabalho. e Eunice ri, se reacostuma com essa felicidade, percebe como pode ser tão feliz com essas miudezas, com essas coisas que ela ria mentalmente e ainda podia se achar infeliz, mas como, que injustiça com o mundo, pois. ela ria, de ilusão, de criatividade, de ignorância, do choque dos outros. então Eunice corria de se acabar, corria, ria, ia, ria do próprio cansaço, coisa que nunca tinha sentido, sentiu pela primeira vez. e nesse cansaço de bondade e compreensão, aconteceu o que ninguém poderia supor, um eunuco, um mutilado, correndo, se desfazendo e o seu suor, os pingos o rio o fundo: ela estava tentando um aborto sutil de suas ideias

*  
sabe, Cândida, pensei no seu nome durante tantos dias. te gerei, eduquei, cortei cabelos e unhas, brinquei de boneca mesmo detestando e tirei os pratos da mesa. agora, implorava ao cosmo para que você tivesse uma utilidade, para que você funcionasse. destarte, escrevi o teu nome e cá estás, tão Fátima, tão negra, nada delgada e, olhe pra ti, ousas usar um chapéu. antiquada. ah, Fátima, já és um fado, é tia de alguém, é árabe. a árabe cachaça, Cândida, que procura apagar com o gás do candeeiro a luz da candura do mundo, sim, Fátima é ocaso. fosco, da míngua ou da mágoa, Cândida alva do globo ocular. despistam-se uma da outra, embaralham-se os ais como se fosse para perder a mira fatídica d'uma e da outra. mas eis que não contam com o meu costume de desistir, de Terezar, ceder a intolerância própria do autor. esse autor que escreve, essa névoa que envolve Tereza, encapsulada no nome de Cândida, essa serventia que não é da casa. quem previne Cândida não toma café nem daime, quem a preserva é o destilado do povo que tem seu baço inteiro. Fátima, Cândida... é o orbe, o buraco mais embaixo, a perfeição da infecção. já se perdeu Tereza, tá de pileque e tem um encontro. coincidentemente, com a cantoria daquele setentrional ou septuagésimo. no natal, já terei esquecido, envelhecida e pobre, Cândida, que agora só tenho seu nome e que o autor vai esquecer. será Isabel, ou Laura no réveillon... ou Zuzá, outros sons precários, outras combinações silábicas, outros pratos na mesa e aquela boneca. essa boneca eu deixo a Fátima, porque... me perdoe, eu nunca a dei um nome. mas ainda posso sugerir um

*
(...) 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

não vieste leve
mas sim como uma febre chikungunya
como uma coceira na sola dos pés
como uma mesa desorganizada

não vieste, ainda, mais leve

que o espaço vazio entre duas palavras
e a fome de meia-hora de sono

não vieste, pois, por terra ou por ar
por ideia,
mar,
ou por qualquer natureza de ser longe

por não vires, que és, ainda que não seja
mais que os que então vieram
o tempo que é meu, as coisas que são minhas, o que quer que planeje:
uma fisioterapia para lembrar

ou seja,

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

(...)

há muito me falaram: as vias correntes e suas esquinas cheias de pequenos jardins, buganvílias e dos poemas para elas feitos quando vim  e venho sempre  ouvir sobre as coisas que caem ou como vinho na camisa mancha, mas nenhuma árvore vez alguma caiu sobre meus pés

dizem que sou o homem que desceu no poço, segurado por uma corda e pela força de desconhecidos ou o familiar que aguardou a lambida no pé d'um cão de rua ou o poeta que jamais aguentaria setenta anos de vida

algo me diz sou o não que se fala e também o que não se fala, que revisita pouco o ar com sons sobre a naturalidade da mudez/ o esforço severo da fala rocha

*
sou o tal-leitor-não-ninguém e sou também o vinho que me destranca ou o vinho que mancha toda a imagem dos que resolvem escrever uma carta de amor, os bêbados que não conseguem deixar a bebida enquanto se tratam de uma psoríase, os jovens que se impacientam ante a paixão. sou esse vinho de não-estanque, mix, torneira que vaza, cálice buarquiano, enfim

awake

o ranho
roço
poço
dorso do corpo
o rastro
casto
vasto
salvo o engasgo
corre
foge
pare:
remela amanhece dura
e amarela

vortex de catatonia

quantas vezes sinto que estou para morrer, e que isso tanto faria, eu aceitaria de bom grado um ataque fulminante, um coágulo relógio bomba na cabeça; as úlceras do figado todas se terminalmente inflamando. então penso em tanto feito inacabado, tanta miragem a mim cega. desisto da morte; às vezes sinto que estou para morrer e a quem deixaria senhas do banco? a quem dedicaria um verso, aquém, ainda preciso dizer a palavra. desisto da morte; às vezes sinto que estou para morrer, ainda que a cabeça não me permita, que o músculo cardíaco não esteja em dia de descanso, o câncer no sangue não venha e não me tome a vida; às vezes ainda sinto que amanhã não sentirei nada mais, mas desdito a desistência; às vezes sinto que já estou Viva; mas o que faço de ser viva é apenas me expurgar, no espaço semântico do agricultor ou do bitransitivo, de idéias maledicentes enquanto penso: não escrevo, entro sempre em um vórtice de catatonia

antessala para dez dias de imagens

vê-se como se sucumbe ao carinho do homem que mata
como as piscinas expostas 
[imagine o banho das crianças
ou o afogamento da mulher de longos cabelos
ou um tobogã interrompido]
cones abandonados entre jardins

a pichação faz parte do cenário
o abandono citadino à beleza do abandono

e a solidão dos homens que viajam só
que vivem só
o campanário ucraniano de madeira
e o céu visível

o achatamento das gotas
donde chove a cântaros

um puma de cobre, os irmãos grimm visitando a casa de mila
em doismilequinze

mas o ar.
e as calcinhas como algemas de Auxilio.
e as mãos sem as linhas.
e os esquartejamentos.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

quatro braços de areia (com pedras leão)

faz-se mosaico do deserto
mas como seria possível
a imagem é a mesma

dunas alaranjadas
dunas alaranjadas

salvo alguém a atravessá-lo
então faz-se sombra e anula-se a solidão dos grãos
e se alguém atravessa o deserto
é mesmo que uma ofensa ao caminho
ofensa à natureza íntima do ser grão
da respiração do deserto
que é só, não há sombra não há homem

mas quando
há homem e há braços de areia
que se desfazem nos abraços

tudo se move, mas não se demove

movimento sempre
e sempre que me esqueço
e, se paro, não me mexo
morro...

até o morro se mexe
duna, o karma na areia se risca:
move-diça
e danças, danço e vamos

por isso aqui em minha amnésia
não posso esquecer de andar
se eu parar
meu mundo vai se acabar...

(ou apenas o deserto acabará
pois os espaços vazios juntos
somam-se em um novo mar)

sábado, 7 de fevereiro de 2015

sophia e natan deitados
mortos e encaixados
com um livro de emily dickinson entre as pernas:
ato que garante o poema

o poema da larga cama, dos corpos
do que a maldição se revela
deitados, com pincéis de craiom
depois de poucos copos
de um terrível e indigesto
bourbon


sophia e nathan deitados mortos encaixados

sobre a lembrança de velhos; ecléa bosi, 1979

dona alice, amuada,
depois de um dia de revolução
senta-se em casa, 
faz café, oferece, 
mas diz que está fraco
(como sempre)
e recorda outra revolução

hoje não teme, não geme
quando a luz apaga

mas na memória se lembra,
dona alice dizia no quarto nada sujo
que seu único medo
era morrer
no escuro

afasta-te com teus braços i

começamos em um ponto já limite. na fronteira da minha mente. então, disse-te que saísse, pois não aguentava o seu movimento dos braços. um manifesto próprio e sem sentido do que pareceria estar em luta contra o que se busca. então, disse-te isso, mas pouco influenciou, como continuavas a gesticular como uma pantomima sem lógica, uma língua esperanto de sinais que apenas você conhecia, mas o esperanto não é a língua una, o om da meditação, você pensava: coitado desse mundo não conhece a si mesmo nem à história ocidental antiga, mas tu mesmo não pode recordar do que falaste há poucos dias. talvez querendo representar uma cornucópia da noite, mas voltando sempre só, como o grão de areia revoltoso depois de um dia de praia e vários banhos. como, talvez, um escorpião perdido do ninho que pica uma jovem alma como vingança da própria desatenção ao caminho. então, eu só queria que você se afastasse de mim por minutos pois não aguentava a dimensão dos seus braços a se mexer histericamente, coçar/ moldar cabelo, orelha, tentar estimular algo que ainda não entendo. afasta-te com teus braços quando estes não podem estar contidos. enquanto esses ainda não sabem de sua natureza de alma

madá ii. ou madalena de caravaggio

eu, vista como a madalena de caravaggio
coitada, acossada pelo que não vemos
passiva e lamentosa
pensando sobre os filhos de borges
e o whisk and bowl
que acreditam superar o presente nas multi formas
que não me falam tanto quanto o silêncio dos que estão tristes ou os ágrafos da esquina
e que se encortinam sob uma imagem turva
pois, sim, não se podem mostrar
não se podem revelar

pois ainda não souberam ser

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

hodiernus iii

quando se torna suscetível
à vida mundana
as coincidências aparecem como desespero
aquele último apelo ao mistério

quando se escolhe a vida mundana
e já se conhece o que as almas podem oferecer
o apelo ao mergulho é reincidente
são gritos

quando preferi a vida mundana
eu sabia que nunca a conheceria por mais de um dia
e se há ainda a escolha,
hoje o apelo é meu
devo proceder como sempre quis:

fugindo do fundo do mar,
fugindo do que os poemas falam

quando levo essa vida mundana,
recebo visitas de outras vidas, elas me tocam em pele
elas buscam se reunir ao meu lado
um arroubo de fuga terrena
onde mitigo o que desejo

me enfio numa simples vestimenta
bebo alguns goles d'água
e me rendo
a saber, os tratados que escrevi
quando não os podia falar:
contradição, esquecimento e vestes
onde desfiz meu receptáculo
que se embala com um xale trançado
com nós nas pontas:
as palavras que não pude dizer

o que sobra é a questão filosófica
questionamos ao que possa parecer
mudança de tempo
hoje chove? o que questionamos humanamente ao acaso
a profunda realidade última
hoje chove ou não

para ir à festa em ur
onde abrirão vinhos, os melhores
onde haverão ligações perdidas
e conversas esquecidas
e ao deitar, há um sono que confunde os sons
(há reunião em meu quarto)
e os sonhos que esse sono tenta salvar
são os do tratado, acrescido de espíritos
que em ur ou em outro qualquer lugar
fazem festa em meu quarto

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

avançando aos solavancos
só se ouve o ruído das coisas
atravessadas à distância

enquanto houve caminho
me inscreviam
um completo rodoanel
circundando meu corpo

no entanto,
sou toda uma evasão de moradias
e mesmo que assim seja
há um usufruto
um direito alheio
em governar para mim
as três vontades básicas
os três objetos da bolsa
e a teoria geral das coisas:
usufruto à quintessência

[fim do toque de recolher
hora de ancorar o estado inértico
voltar a sonhar com o simples recato
e torcer que aguaceiro nenhum
leve a resposta aos físicos]

eis a supernova
eis a verdade diluída
um caminho trôpego para intuição