domingo, 19 de abril de 2015

Eunice quem chama

das coincidências de Eunice: ontem, enquanto esperava no hall de um apartamento desconhecido, para um desconhecido me receber e para que eu lhe pudesse falar algo, me encontrei com uma mulher. ela não me olhou nos olhos, estava entretida com algo e havia um mal estar quanto ao recinto ser muito pequeno. eu não podia fazer muito, a não ser olhar para aquele aparelho que ela tinha nas mãos [o entretenimento, as luzes, aquele imã misterioso]. então, no minuto que se sucedeu, ouço um toque. lembrou-me de todos os toques que já havia ouvido, que já tinha silenciado ou que já tinha respondido. o toque do celular do meu pai, o toque antigo do celular da minha melhor amiga, o antigo toque do meu próprio celular. então, com essa atração natural que esses aparelhos nos impõem, não pude deixar de olhar aquele nome que tomava aquela tela de 6". o nome que anunciava uma catarse, uma coisa que eu ainda não conhecia desde que conheci aquele nome. quem chamava a mulher ao meu lado, o óbvio, mas esse mistério terrível que a narração tem que passar até o clímax. rio, mas, ah, me digam vocês: quem? quem telefonava para aquela mulher com aquela sacola imensa que dividia um recinto minúsculo comigo por corridos dois minutos. era. ela mesma. a raiz, a louca, a vilã da história. era Eunice e, quando li isso, meus olhos marejaram, quis arrancar daquela mão que nada entendia sobre quem estava a chamar. e atender. arrancar daquela mão de quem não pôde me olhar nos olhos nem por um segundo. e atender. arrancar daquela mão apenas para ajudá-la a carregar melhor aquela sacola imensa que já a feria. e simplesmente atender. eu tinha boas intenções ao pensar em arrancar aquilo daquela mão. e finalmente poder falar com ela. falar com Eunice, perguntar onde ela estava, quando viria para um vinho, quando se enraizaria nos meus cães, nas minhas plantas que iam chegar. perguntar para Eunice o que se deu de Beatrice depois das tardes cantarolando baez na américa do sul. e onde eu poderia estar para ver a próxima vítima, para assistir como se daria, etc, ou só para poder ouvir aquela voz que iria reincidir uma pergunta sobre quem é? quem é? quem é? alô está mudo vou desligar e ligar novamente, tchau

sobre [ ]

sobre um homem sem nome que conheci na rua de comércio, onde fervia de tudo, e serviam-se de açougues moscas e motores de polimento. era o que ele fazia antes, quando não o vi dessa forma: andava sobre as ruas sempre com um bivaque nas costas, pronto para dormir onde bem entendesse. bandidos que aplicam golpes em maternidades, mães recém-abortárias, idosos ou internos de qualquer hospital não me emocionam como o homem com aquele negócio nas costas. ele era como um circo inteiro: como sempre tem um circo entalado no meio da periferia com os melhores palhaços, onde rimos à vera, sem medo, numa forma se delírio, maior forma de delírio, [inocentemente os que se dopam de placebo ou qualquer outra coisa acreditam ser delírio]. onde os animais sofrem maus tratos, mas são apenas animais, todos pensam, ninguém quer saber daqueles animais magros [eles têm de ser magros para serem bem escondidos, é proibido, ora mais, mas tudo pelo riso e encantamento] -- onde há também O delírio dos animais, este tão grandioso tão lindo tão [apenas isso poderia me emocionar mais que o homem]. enquanto a alguns metros o caos se instala na casa de alguém que passou a vida amolando tesouras e alicates ou trocando pulseiras e baterias de relógios, onde vive O delírio. como vive O delírio aquela pessoa que diz, lê tanto e não entende, enquanto ouve, quem é gita gogoia? foi na casa desse amolador, quando o mesmo já não estava, o sem nome, que vi e entendi mais coisas que musil escreveu sobre o sem-qualidades. esse é o sem-nome, todos os nomes, todas as idas, todas os mandruvás que destroem o jardim que seus animais sempre desejaram destruir, mas ficaram presos atrás das grades de acesso ao quintal. depois do último alicate amolado, ele saiu com aquela sacola desengonçada nas costas pronto pra dormir em qualquer lugar, morrer em qualquer lugar, os sem-nome-dos-lugares e os sem-nome-dos-tempos, todos as ausências que também me assemelham 

segunda-feira, 13 de abril de 2015

"Quem diz dor diz segredo"
Alan Pauls
a s. m.

veste-se dessa sua presença
de lua nova -- expectativa
d'um mero devir de pranto
traduzindo-se num só corpo
(o projeto frágil de não poder consigo)

pode ser essa tua presença
(ameaça -- voz grave -- puro conceito de sentir demais)

ogiva

lembra-me dos meus piores temores
em comum

e entendo-me com essa lua nova
de trinta dias noutro canto
como a pele às justas peças

fundos sulcos

se à minha queda tu não vens

"poetisa, por que não sobes?
the downstairs means nothing"