sábado, 30 de maio de 2015

eu sei: qualquer um de nós
poderia pensar
sobre uma claridade
que emana da lógica mais pura
os algoritmos da onda
criada do nada

eu sei: qualquer um de nós
poderia entender o prazer
de um ladrão de bancos
que profana túmulos
quinzenalmente
atrás de umas obturações de ouro

[o que eu sei dessa tarde: panos úmidos
sobre minhas alergias, necroses
panos mornos sobre as dores de garganta
panos secos dentro de bolsos com lapelas nas calças cinzas de oxford -- cortada, após enfestada, no quarto dos fundos de uma pequena vila de desterrados modernos
panos de grande extensão para cobrirem qualquer móvel da poeira]

essa tarde de ventos fundados
pelo grande vazio da palavra que sempre se descuida do poema

eu sei: qualquer um de nós
poderia passar por isso

terça-feira, 12 de maio de 2015

ocorrência[zzz] da vida mundana

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uma vulnerabilidade congênita que todos os dançarinos contemporâneos padecem em não conhecer até então os limites/ as possibilidades dos músculos do seu corpo e quando percebem todas esses caminhos de movimento, reproduzem-os todos ao mesmo tempo num espetáculo de exorcismo do demônio da arte

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precisava vos dizer como são leves tais estouros e experimentos musculares, como é leve a sensação de quase-morte [as 21 gramas] onde perdemos aos poucos os sentidos: a audição por último -- ouvimos tudo o que não ouvimos em vida nesse momento -- a visão primeiro -- não precisamos mais ver tantos rostos [aquele alívio de agnes em saber que lá ninguém tem  rosto]

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uma mãe dizendo ao pé da cama, dizendo depois. eu quero que ela faça isso depois. a voz de uma mãe pelo depois quando mães nunca querem depois

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tarde da noite, quando as mães querem que se pense se faça se durma, quando visito [ou tento] visitar a única drogaria aberta da minha cidade e não posso entrar, pois, de tão lotada, não há um só espaço para mim -- todas as doenças dançam à noite nos corpos -- todos os demônios das solidões dos sadios saem atrás de um alívio na única farmácia aberta vinte-e-quatro horas pela noite...

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o silêncio e as solidões das histórias dos livros [tudo tão batido, repetido, desde os contos de fadas: o meu preferido sempre foi a rapunzel, solitária] se espalham pelos cômodos deste corpo todo evadido, onde nem mesmo minh'alma se encontra, pois só penso distante e dizem que é onde a alma está, lá onde se pensa. então, nunca esteve em mim, mas a de quem está?

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cogitei comemorar meu aniversário em uma rua de barcelona [ou em alguma por roma, como há pouco soube], dançando uma semana para são bartolomeu. ou em qualquer outra cidade europeia com esse sem-fim de construções iguais. mas tenho essa predileção por barcelona por ser uma cidade sem esquinas/encruzilhadas, pois a cidade é feita para se perder, mas nunca para fazer trabalhos, visto a falta de encruzilhadas, como eu mesma me perdi e achava que estava às beiras do mar mediterrâneo enquanto ainda estava a duas quadras da carrer do meu hotel

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gaudí, quando projetou meio mundo de prédios estranhos em barcelona, imitando ondas de um mar que só poderia existir para lá da estratosfera, estava apenas querendo agradar olga e vasha do livro [lembro dos nomes e das origens], nativas do além-estratosfera, meninas que se interessavam, tal quanto eu, pelo vazio que há para além das famílias, fora de casa, todo o vazio

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sentados ao redor da mesa vazia, sobre imagens de santos e sobre aquele crucifixo que sempre mais atormenta que protege, escutamos:
"nasci em meio a brocas e lagartixas
falo sobre a ressurreição
e certifico os outros ao redor disso
há vidas
espírito e alma
e um pé de ingazeira
resgatado de uma entidade da memória
onde me arrebentei com um cavalo
e entortei de vez meu braço
que mede um metro e quatro"

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um camelo deitado, exausto, numa beira-mar de Tânger esperando para alimentar um Delírio de alguém que pensa atravessar um deserto, que pensa ter sede, criando as tais sombras inconvenientes do deserto, mas diante daquele não-oásis que é o mar mediterrâneo

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(...)