quarta-feira, 29 de maio de 2019

tula pilar

o coração da poeta parou
e da porta só cantou a vontade
das longas odes e marchinas de carnaval sobre queimadura de óleo
e marcas na blusa
logo abaixo do umbigo

recostada ofegante no portão de carolina de jesus
é, pois, acolhida
com um abraço brilhante que só aquela cor tem

o coração da poeta
não quer mais a azia subalterna
ouvida ainda no front dos saraus
das casas-grandes

o coração da poeta
reluz o ouro
inacadêmico
inacabado
e migrante
polido propriamente por uma garimpeira
da antiga Canindé
hoje, marginal tietê

segunda-feira, 13 de maio de 2019

I)
os pássaros pretos aprendem a atravessar a rua
sob um viaduto imundo num vale do pitimbu
olhando nos olhos de quem dirige a máquina do tempo
quanto, decerto, morre-se
para que a memória aprenda
a sobreviver?
qual cor além da preta anuncia
em canto ou voo
o impermanente?

II)
a juventude cansa-se para poder retornar
tardiamente
em aventuras e tempo perdido
aos dezenove anos, o terreiro do paço refletia o incômodo tão branco do esquecimento
ao mesmo tempo em que se buscava ler em línguas antigas o clichê do lembrar

"memento" alguma coisa

sobrecarrega-se de passado aquele dia, cujas leituras
abrem altos cânions para as sepulturas
por onde correm as histórias familiares,
mas pergunta rachel de queiroz "que importância tinham o filho, a vida vivida, diante daqueles dezenove anos?"

III)
quem presencia os acontecimentos é aquela carpa ornamental,
presa a um aquário
por duzentos e vinte e seis anos
cheia de anéis e brilhos enormes
aqueles olhos profundos que aprenderam a olhar
comidas caindo próximo a si, vendidas em saquinhos
por alguns míseros metais

outros animais em fiordes escuros também aprendem a ver
por séculos a fio
o opaco brilho do fundo

mas o homem sem sombra
esquece-se rapidamente e prende-se à esperança de que,
ao abrir o túnel da mítica passagem
da mentira para a verdade,
inaugure seu momento glorificante de expressão de ser
a própria anamnese
mesmo quando já não há um porquê
e, nesta ocasião, os papéis já estão sendo assinados
o padre se retira

IV)
lembrar-me do que repudio refere-se apenas a mim
não ao outro
a via crúcis dos diversos rostos que tive
e bocas mutiladas
e mãos exageradas
e caminhadas descalças
e embriaguez
e cabelos sem formato
e esperas em hospitais onde não estive
e as cidades esquecidas
e a cor secreta de um humor
e a ausência dos que vieram antes

rememorar a mácula das grandes guerras
e as íntimas mágoas
não se nega o exercício de lembrar da beleza, a qual não definir a quem se refere
é a regra

mas a natureza morta
e "os pobres ventos no burro da noite"

(a quem, sim, uno:
o olhar de H.
e como ele me diz que essa ira passaria caso visse a lua)

V)
toda ancestralidade se inicia em uma linhagem
ponho-me em dúvida
se a minha inexiste
ou se debuta

VI)
relembro a H. os tempos tristes
e sempre há três canções que rondam
as lembranças

uma de amizade
we'll make a pact
to never speak that word again

e outra de um parasita da cidade
lifting the mask from a local clown
feeling down like him

por fim, a terceira como dossiê
Minha América, minha terra à vista
Reino de paz se um homem só a conquista

VII)
a paleontologia dos cães
junta tristezas sob o sol
assim treino as várias faces que brilhavam
a luz branca da prostração

VIII)
gravar essas palavras a ferro
debaixo de pancadas de chuva como a sorte manda
e ainda todas se parecem
como um longo episódio televisivo sobre o inverno
algo que não me pertence
e um grandessíssimo
erro