quinta-feira, 29 de abril de 2021

poema ruim para Ferlinghetti

não dá para acompanhar todos os lançamentos músico-lítero-cinematográficos
ainda que estas sejam as coisas mais importantes da vida depois de acordar
porque as coxas do tempo se atrofiam a saber 
dos atrasos no trabalho
dos sonhos com o trabalho
do trânsito para o trabalho
do nó nas tripas pago ao banco
da colher de doce depois do almoço que aplaca 
o cansaço intermitente pela distimia não diagnosticada por um médico
mas por um burocrata do cartório que escreve com a sua máquina de escrever BRASILEIRA e da letra tosca dos recursos humanos que completa a sentença PROFESSORA 
não dá para acompanhar a raiva de uma poesia que me assalta e me rouba os cabelos
mas as mãos estão sempre tão ocupadas
que não dá ainda mais para erguê-las
como rendição ou charme 
de jogar esta mecha desidratada presa suja
que entope os ralos que eu mesma limpo com o nojo de manusear algo morto
tão morto
que não dá para não querer
vomitar
uma palavra que se salve deste mundo 


terça-feira, 27 de abril de 2021

outras crises para Mallarmé



a crise do gigante é o verso

sua mão

orquestração de mil gritos


o encantamento falso

do verso         certo


polimorfo prazer que aí se reitera

em disjunção livre e simples

dos elementos


forjador,

toda alma durará

e nada é proferido sem antes ser


o dizer é a melodia do sonho

e o prazer no grito do gigante


abre-te ao teu hemistíquio:

— o nada

quarta-feira, 21 de abril de 2021

O despejo das pombas

    Ultimamente, tenho me sentido leve como se não fosse feito de carne e vísceras o meu interior. Etérea, cansada e sagrada, leve que não se pode deixar marcas e vincos nos gravetos, nos lençóis, e nem racham as telhas. As pernas não as sinto roçar uma na outra, como sempre foram, devido a minha configuração mais pesada. Não sinto meus braços apertarem o contorno do pescoço, o que não significa que não podem estar, de fato, apertando, pois assim sempre o foram. Mas não cedo tanto aos laxantes, apenas quando tenho cólicas. Fecho os olhos e H. coloca na minha boca um macarrão cru delicioso na cama, de onde também há dias não saio. São mesmo estes dias quando há de se convir que todas nós sabemos que não é possível fazer um lar sem proteção. É por isso que procuramos as construções feitas com a vista à nossa altura, por onde vemos as chaminés do Nordeste - para abrigar depósitos de cinco mil litros necessários a fim de abastecer de água as casas das pessoas. Também o local das antenas dos apartamentos conjugados, por onde algumas informações indesejadas costumam chegar, repleta dos logotipos que prometem uma velocidade incapaz de se cumprir. Não a natureza, porque é desconfortável. Tão desconfortável quanto ter de se mudar quando os vizinhos não cumprem a lei do silêncio. 

    Essa leveza não é sintomática para quem vê de fora, porque a reviravolta sempre acontece quando uma de nós morre de uma forma cruel nessa água toda. Um tropeço, um tiro, o veneno das crianças e o excesso de cuidado, que amofina nossos trejeitos. E porque moramos juntos, é difícil transitar com um passo firme, as barrigas se empurram quando resolvemos ser insuportáveis um com o outro. Crescemos e dobramos de tamanho quando nos empoleiramos. Nunca queiram ver o que se passa de noite quando vários de nós têm fome. Aconteceu que, em tal dia, algumas pombas vizinhas foram despejadas de casa. Vocês já olharam nos olhos de uma família despejada? Há algo de etéreo e cansado, além de sagrado e muito cínico. Isso acontece porque é preciso um determinado tempo para transitar sem rumo e sem ter para onde voltar depois de um dia longo. Também é nesse momento que o vaticínio se concretiza. Assim elas voaram por dois dias, com a cabeça sempre apontada para a antiga casa. Voando em grupos como que para assustar o homem que limpava a caixa d'água e aproveitava para estrangular uns filhotes, colocando-os no saco. O homem do saco é uma história real, eu mesma vi.

    É uma festa para as crianças, no início, porque sair de casa é uma verdadeira aventura, mas que, neste caso, logo cansa e dá fome e as crianças não perdoam quando estão com fome. A criança despejada tem um quê de demoníaco e gostaria de ir embora com o primeiro que a oferecesse um pão com manteiga para, depois, acordar com remorso quando percebe que está entre estranhos. A criança, como um ser primordial, pensa primeiro em comida, depois pensa no sangue. O sangue é uma espécie de viagem longa demais para aguentar a intimidade do dia. É, portanto, impossível olhar nos olhos de uma criança despejada, não porque é insuportável, mas porque ele não olha para nada, apenas para o chão ou para o céu dos adultos atrás de comida. Você já olhou nos olhos de um adulto despejado? Nós, por aqui, duvidamos, porque eles estão sempre em busca de amparar os olhos das crianças e causar repúdio às pessoas com os papéis. E você já olhou nos olhos de uma pomba despejada? Oh! Não feche os olhos para isso. É desumano. Como é bom se sentir leve algum dia, como se estivesse esperando a morte a qualquer momento. Distraídas demais estamos.

pessoas não são feitas
para usar fones de ouvido

nestes cursos online

    cursos     online
c ur    sos o n       line
cu r s o    s     on l i n    e

é preciso atiçar os tímpanos
com um plástico
para viver o tempo 
do cyberpunk

domingo, 18 de abril de 2021

Memórias do subsolo

    Ler 120 páginas do Dostoiévski, "Memórias do subsolo", mas, antes disso, adormecer com o livro aberto e continuar preenchendo a narrativa de olhos fechados de tão afundada na história que se pode chegar. "Sempre terei o subsolo" é um verdadeiro consolo, porque quando dou por vista, já me lembro de um garoto chamado Júlio César, com a barriga proeminente e poucos cabelos na cabeça, como agora já me parece meu aluno (e provavelmente sejam as mesmas pessoas infames nos anos iniciais de colégio) que pôs um pé para que eu mergulhasse diretamente ao chão quando eu tinha por volta de 7 ou 8 anos. Neste dia, eu me dispus a ir buscar o som para a professora, que colocaria alguma música para que nós ouvíssemos.

    Tão rápido quanto caí, levantei-me e fui engolindo um choro dolososo por conta da fratura que se fez em um dos meus dedos da mão. Busquei o som, por uma questão de honra muito forte que sempre tive e voltei à sala, ainda com muita dor. Mas não há honra na dor e logo me pus a chorar, quando vi que meu dedo assumia um tom roxo e aspecto inchado, a ponto de não ser possível mais flexioná-lo. Assim foi a minha primeira e penúltima fratura no dedo, sendo necessária uma camada de gesso e muito esparadrapo e gaze.

    Também lembro do cheiro da minha mão depois de retirar o gesso, um odor adocicado e úmido de algo há muito guardado, e a textura da minha pele, que mais parecia uma esponja e ainda não era totalmente possível fechar a mão em um murro que sempre foi o meu grande sonho poder dar em alguém. O que me serviu para aprender sobre a dor e sobre a honra, pois, anos depois, em um dia de treino de esporte, ainda na escola, desta vez não foi o pé de nenhum algoz, mas aquela coisa desumana que é uma bola de vôlei, em conluio com o erro do tempo. Desta vez eu já sabia manipular a dor e imobilizar o dedo, o que fiz com palitos de picolé e algum esparadrapo que havia guardado em casa. A dor não cessou por dias, precisando, novamente, que a honra fosse junto ao esgoto do consultório de um médico ortopedista.

    Dessa última fratura, considero uma vitória aleijada, já que havia se passado tantos dias desde que ocorrera, que o osso fraturado se calcificara sobre o outro, formando um todo para sempre inchado. Um caroço no meu dedo e assim vivo até hoje. E este dedo dói sempre que chove, o que me lembra que "nasci sem nojo da dor", como diz Clarice Lispector. A mão do murro hoje já consegue se fechar, apesar de continuar vazio o alvo, não a vontade.


quarta-feira, 7 de abril de 2021

Sílvia,

 I

Lívida, você acorda com o cordão de prata arrebentado e olhos inchados de alergia. É possível ser, em parte, a poeira do roçar da nuvem, o concreto armado, o ranço. Presa à maçaneta de uma porta, de metal frio e grudento, a mosca é atraída pelo cheiro de suor e abandono. É possível, então, acordar desta maneira? Esfregando as patinhas sem cerimônia? O olhar estreito, o olhar deformado. O caleidoscópio. 

Na ciclovia, o bebê sustenta um olhar para mim, este que já tem seu método, não olhar para corajosos. A maçaneta fria e grudenta tira pequenas lascas de pele morta que se deve deixar de rastro. Digitais, em todo caso. Da mosca, não. Suas palavrinhas são emplastros, moldam-se à pele ferida, tatuada. Gritinhos, ou o barulho de ovo fritando. Experimente escutar o ovo gritando. Ou a vocalização de uma surdez profunda. Experimente aceitar o silêncio. Nessa mão que segura o bebê e a lembrança do cigarro, lê-se o método. Como se desconjuntar. Como ajeitar os dentes para conceder a imagem. Como tingir o cabelo para enfrentar o tédio. 

Não se desperta desta maneira, ora numa cama, ora no impossível. A mosca atrai o sapo, que vem da chuva. Assim contam a história, com um beijo ou um canto. Assim conta tua história, sem aplacar as forças da natureza. Assim desperta das camadas de sono e da filosofia moderna. Assim sabe o que escondem os vazios, como se ganha uma guerra. Este é o caminho. Todos fingem, menos você. Lúcida, mastiga o anti-histamínico para alcançar o amargo. Encontra a palavra. 


II


Coleção de palavras desconhecidas. Escutaste o grito com teus airpods? Quando aquele ovo se estatelara ao chão, enche-se a boca de saliva grossa. Metros de papel higiênico para aplacar aquele cheiro amarelo e translúcido. Tanto trabalho para recolher e, ainda, toda a saliva se acumulando aos montes. Bíle. Um escarro esquisito.

Prontamente acorda de um sonho familiar. A casa da avó já morta, que há muito não lembrava de si. O gramado com bosta de animais concretado. Como as pontes e a praticidade de se fazer de âmbar para a posteridade. Pobres famílias que economizam os jazigos graças aos queridos empreiteiros. Mas ainda há as cortinas, aquelas janelas-portas. As cortinas brancas e bordadas.

Mesmo o familiar mais absurdo tem o tino para a arte. Jardinagem, reciclagem. Trocadilhos infames, ou nanquim em papel. Futebol, bebedeira, ciganismo, didática. Este léxico de quem sonha em outra língua, mesmo sem saber outra língua, revela tamanho tino. É preciso chorar diante do gato atropelado. É preciso viajar mensalmente para outra cidade para manter o segredo. Prazer - isto não é necessário.


III


      O que é a vida, senão acordar? Lembras daquele filme do Richard Linklater, cujas conversas vão desvendando um profundo despertar, ainda que este jamais aconteça? É que sonhar me parece como patinar num limo qualquer, verde de lodo ou de pus. Renunciar a qualquer biogênese, desentender-se com o mistério, visto que sempre haverá este tempo de cambalear, roncar, espasmar, morrer sem dor.

            Eis tua vida, a mim cabe imaginar. Fazer de mosaico, dar o tom da imaginação e da denúncia. Como acordar sob o teto de um desconhecido? Superar a vergonha, os cheiros, a universidade, o filho, a noite, as infecções, os quarenta gatos, o homem seboso, a memória da avó, o empenho para o nada, o professor, o pesadelo. Reivindicar todos estes sentidos, o vento egóico, a técnica, as ruínas. 

              Despersonalizo. Como o sonho, o tempo embica sua engrenagem para as margens, como este atual congestionamento no canal de Suez. No corredor da escola, me vejo de cima. Também na cama, na cozinha, no piche, segurando um volante, é reto o caminho. As pedras do canteiro da Avenida Omar O'Grady ainda estão quebradas diante da lembrança dos cachos sem vida. Horário marcado no salão, janela, colisão. As pedras daquele canteiro seguem deitadas, ninguém do Rotary se solidarizou com as pedras. Ninguém do Rotary a conheceu.


IV


Vaticino as chagas de Cristo. Ontem, cortei-me com uma faca, justo no braço que sinto coçar pelo traço reto, por onde, também, já esfreguei uma faca cega. Fé amolada. Rezar todos os dias quantos padres-nossos forem necessários para iniciar uma aula, lembrar de cada partezinha que me parece errada demais, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. E outras partezinhas tão certinhas, perdoai as nossas ofensas assim como nós não perdoamos a quem nos tem ofendido nos deixei cair em tentação não nos livre de todo o mal. Eu peço clemência.

As pontas dos meus dedos estão dormentes. Lembro, no ensino médio, de pedir para as pessoas puxarem minhas mãos, com mais força que puderem. Hoje, sei que já era a despersonalização. Amanheço assim e me pergunto como acontece com você. Já acordou assim, com alguma parte do corpo dormente, ou só com os gritinhos, só com o desconhecido? Lembra do réveillon, Lila e Lenu no terraço. Lembra Lila sendo arremeçada pela janela por seu pai? Os bichinhos vermelhinhos a acolhendo como um em um manto sagrado? Os tiros e o horror da humanidade? A ausência de margens, o tremor, a dormência. Não durma ainda.

Eu realmente queria que você já tivesse sentido isso, Sílvia, porque eu sei que sentiu.