sexta-feira, 30 de julho de 2021

da visão

queria lhe contar das coincidências
ao atravessar, em fim de tarde 
no viaduto do baldo, o acendimento 
das luzes que pagamos, públicas
fotos do santuário de patti smith 
em rockaway beach, depois do tufão
as alamandas amarelas endêmicas 
a fazer sombra para a briga dos gatos de rua
que caçam os pássaros que entram nas casas
para comer a ração dos cachorros
o nível da maré, sem precisar das tábuas
porque existe o rio e ele me conta

mas o sorriso dos meus alunos
e o fascismo
me obrigam a usar este ponto final.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

decaimento beta inverso

em menção de H. H.

pobre neutrino
nos corpos densos e opacos 
aqueles que atravessamos sem qualquer notícia 
a buscar raros elementos de colisão 
e rutilâncias sagradas

numerosas atomia e anatomia 
do texto hermético 
é a química das coisas 
no detalhado fractal 
da existência de Deus

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Marcos

Marcos, se não tivesses ido
sei que terias os cabelos castanhos
caem os meus ao fabular se seriam anelados, 
grossos, finos, lisos, pesados ou teus

ou será que nascerias esguio, pequeno
com teu sangue compatível com a mãe
ou já sentirias o susto em cadeia de uma
injeção que te salvasse e a todos nós 

como não saber se tu tinhas
uma marca de nascença 
um gene para o astigmatismo 
um lábio leporino

com o que trabalharias, imagino 
professor, assim não eu precisaria ser

terias, sim, um excelente humor
uma excelente memória
para as músicas todas que aprenderíamos
e me explicarias o peso daquelas palavras

cuidarias de nossa mãe muito bem
ou deverias ao fisco

não te vimos em meio a todo o jorro quando
tu e nossa mãe num aeroporto em Fortaleza, 
feito eu, outrora no supermercado,
perderam-se um do outro 

vejo a ti, hoje
em uma árvore no canteiro 
nos homens sonhadores
na memória do fogo 

no mais, já te esqueci 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

epílogo

nas mãos em silêncio 
há muito o que se contar 
dos dias que virão 

a homilia se estica
para que você dobre o folheto 
em um fino tubo
encaixado entre seus pequenos 
dedos inchados 
no marco da aliança 

condição da ascese, o coro à Sant'Ana
doce, clemente, gloriosa 
abre as janelas 

procura uma costura, a areia, 
teu rosto nos amores 

a História
aberta à unha
de cor e salteado
hoje não cessa 

subscreve


segunda-feira, 5 de julho de 2021

estética da decepção

iguais a você, tantos
andam a lustrar a tez de 
um teórico com vinagres de
almíscar, têm nos olhos a 
arrogância precoce do título
e batem às portas por onde
entram tantos outros
iguais a você, tantos

quinta-feira, 1 de julho de 2021

chaminé da Cosern

à sombra da chaminé da Cosern
esta espécie de escape para a eletricidade
no fogo fátuo que ascende até perto das folhas das sete-copas 
nossos desvalidos esquentam as mãos
mesmo equilibrando-se sob os trópicos
porque toda noite é fria quando se está na rua

nossos desvalidos têm seu Calabar
que, sob o pretexto de segurança, segue varrendo 
as cinzas das calçadas sem dar conta de que não pode esconder
o sangue quente das muriçocas
o chão de quem se deita
o fogo de quem o pertence