quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Parker Solar Probe

I
Nesse instante raro 
com uma forquilha, assamos milho
as gengivas doem até chegar ao ouvido
cheias de cascas entranhadas 

II
Das doze asanas, uma é alerta:
a mulher que olhar para suas coxas
no Adho Mukha 
terá de se explicar às outras

III
Em tempo de pestilência
instala-se no fundo da garganta
o gosto de alga marinha
daquele dia sem nuvens 

IV
Importará tudo isso 
quando tocarmos o Sol*




*
Tocamos a coroa do sol 
pelo menos três vezes 
e de nada adiantou o registro 
em preto e branco
o povo segue soberano
a intuir que o astro
tem a cor amarela
aquela que se escuta
na barriga


quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Caçadores

I'm not stopping
I'm going hunting
(Björk)

transitando entre a disciplina 
e o risco de vida
à sombra do cobogó da universidade 
ou polindo as armas
temo que isso seja a mesma coisa 

ainda ponho esses olhos gigantes 
sobre quem me revela segredos

não é possível que vejam isso 
nestes olhos tão pequenos
nem em meu corpo, que se mexe 
obediente na ginástica 

ainda mantenho os olhos gigantes 
de quem passa a entender

talvez reparem nesse movimento extenuado 
o meu principal disfarce
então é preciso manter os músculos rijos 
diante do espelho 
como quem aguenta a espera 
e o instinto para caçar carne fresca

ainda cresço esses olhos gigantes 
sobre qualquer presa distraída 

movem-se em mim todas as caçadoras
Diana, Diane di Prima, Lady Di 
quando atiço a voz de falar
ou a de dançar ao ricochete do peixe 
e neste corpo ensimesmado
tenho os mesmos olhos gigantes 

dos que cumprem o estabelecido 
ou que encaram
 a caça em delírio 

domingo, 5 de dezembro de 2021

Calor




cabeça quente, coração inflamado e estômago vazio:
todos os postigos da maior estrela escancarados para o sentinela

em cada pelo eriçado pela eletricidade do sonho e da calça de linho, a agulha fere o orgulho
arqueado em ritmo, de chapéu fedora, o sexo morto sempre andou a balançar-se em calças de estopa

carregar não sei o quê, não sei para onde — é isto que se entende por casa
e sonhar — que o sangue ralo, curtido no calor, é reduzido à exatidão do que se come

agora sabemos que jamais houve qualquer abrigo para a sombra
só não sabemos quando exangue, sem suor ou signo o sol abranda

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Fantasmas

voltar a ser visita na casa da família
é um exercício fundante para a distância 
e dormir naquele quarto que dividimos
eu e a minha irmã
com móveis de madeira de lei vindos do Norte 
e que até hoje resistem às intempéries,
ao mofo e às mudanças 
é a consumação da infância fantasma

pesadíssimos móveis:
- duas camas de solteiro
- um guarda-roupas de 2 portas e 4 gavetas 
- uma estante de quina com algumas prateleiras 
- uma mesa de cabeceira larga com uma gaveta

dividimos tudo isso por tempo suficiente 

na parte das portas, as calças jeans
roupas de festa
roupas de escola

na primeira gaveta, as calcinhas
as minhas ficavam no lado direito
no esquerdo, as da minha irmã
onde também surgiram primeiro os sutiãs

a segunda gaveta era da minha irmã 
a terceira gaveta era minha
a quarta gaveta sempre teve o puxador quebrado
costumávamos não abrir
em alguma delas,
enquanto sonâmbula, mijei

neste quarto também foi quando a vida se abriu
num feroz carrossel 
os pesadelos das irmãs ante as provas bimestrais 
os diários da minha irmã violados por mim
meus livros infantis revirados por aquela criança
esperançosa de se descobrir uma princesa 
e que hoje é um fantasma de si mesma

neste quarto também se fincaram as expressões de fé 
os diversos anjos de gesso que minha irmã colecionava 
ainda estão naquela estante de quina até hoje 
o pôster dos Beatles feito de vinil que não existe mais
alguns cofrinhos de quando tentávamos poupar
minha foto da formatura da alfabetização escondida também está lá 

nessa foto, eu encaro o fotógrafo como nunca mais encarei
com as unhas vermelhas aos seis anos
o batom de um róseo cintilante na boca 
e um adesivo vermelho na camisa 
colocado pela empresa de fotos
para saber qual criança fotografar 

naquele dia, eu já sabia que pagar um fotógrafo 
era
um esforço descomunal para minha mãe 
recém exonerada da folha de pagamentos da universidade

então encarei as lentes e sorri com dignidade 
para honrá-la
então fui a oradora e não gaguejei
para honrá-la 

ainda busco honrar a minha mãe 
em qualquer medida da minha vida
que se funda cada vez mais distante
daquela casa da nossa família