quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Ao som de "The earth is not a cold dead place", Explosions in the sky

para Hudson, como sempre

escovar os dentes para preparar o banho frio
lavar duas vezes todos os pelos para o receber
perfumar o caminho de patchouli para me anunciar 
descansar no meu esteio - nossa esteira; o teu peito 

Future butterfly

Na máquina do tempo, feita de aço e muito plástico, conta-se 17:10
fim do expediente de quem a manuseia conforme a terra fica para trás 
perto do Equador, isso significa que, em tal voltagem, já é quase breu 
um homem — meu Deus, era um homem —
aguarda sob a árvore, com sua mochila nos pés, e encara estes olhos 
através do vidro, do pátio da geração que necessita de mais um burocrata 
desacorçoado redigindo e aprovando obras de arte em editais 

são, ao mesmo tempo, horas diferentes a depender do motor e do músculo
mesmo assim as luzes se acendem, porque não mudamos os trópicos 
e não há nada mais forte que as lâmpadas de led histriônicas 
ou maior sombra que aquela árvore de quem espera desde o sol

no espelho convexo, aciono o incômodo — frente a minha própria imagem? 
na luz vermelha em excesso para o astigmatismo; a sensação idem
uma bruxa sentada sobre meu peito cansado
os caminhos abertos sob seu pé rachado

ambos de camisa polo, um rosa — como o céu no lusco-fusco
outro de branco, como as nuvens desesperançadas 
precisamos nos entender mas jamais conversaremos

a máquina me levou para o inalcançável — o futuro, este que não lhe pertence

        tampouco a qualquer um

sábado, 25 de setembro de 2021

Tanto tempo

Tanto tempo sem olhar através da janela
onde uma casa se ergueu
com a rapidez de uma fera faminta 
cujo destino não oferece opções 
flertando, então, com o buraco
e não reconhecendo 
a imagem ausente do espelho 
essa encáustica imagem 
do tempo sem tempo 
a história como ornamento

Tanto tempo encarando a fera 
moendo os miolos
cortando as unhas na carne 
comendo-as 
e regurgitando na boca
do vampiro 

Tanto tempo limpando a cara
mal-ajambrada dessa besta
inquebrantável 

sábado, 18 de setembro de 2021

Qualquer coisa católica demais

os vestígios da escrita primeira
impressos pela umidade
nas portas que já foram lenhos


        urdidura para xilemas 

        e outros dilemas da criação

        para Yeshua 


na via, a poda das árvores é maquinação

de vingança

e revela o maquiavélico gosto materno:

em segredo, corta-se

o cabelo do filho o mais curto

possível

inscrevem a brutalidade

na adolescência desidratada

dessas árvores da via

desses meninos imberbes


Elohim é a escrita do mistério

num tronco elástico morada dos insetos

vil teorema da destruição

maternidade

e correntão

domingo, 12 de setembro de 2021

Armistício

para os urubus de Muriú

na manhã de domingo
ver o mar a uma distância segura
assim também as pessoas 


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Gams

para Sandra Martins
talvez nunca percamos o jeito
de falar sobre tristeza 
mas os pregos, os papéis e as mãos 
marcam até a espessa pele
do leviatã

que dirá, então,
o nosso coração humano?

Ex-voto

evocar o meu corpo inteiro
depois de reparti-lo com as formigas
besta fera sagrada e metódica 
mas que não sabe de cor os Salmos

lâmpada para os meus pés é a tua palavra, formiga
líquens e percevejos continuam a sua comunicação

abrem caminhos ocultos,
trocam carícias 
onde encontro a língua dos vegetais

reescrevo o corpo
e ignoro a imagem 

a saliva das letras
é o meu ex-voto para todos os santos 
anônimos que crescem na terra
dessa liturgia medonha 
a vida