domingo, 30 de janeiro de 2022

Registros de sonhos

era meu casamento, me vestia de branco e tinha algum penteado no cabelo. por algum motivo, eu desistia de casar, ou era abandonada, então tinha me tornado uma espécie de mulher sob influência. desmontei o penteado e virei taças inteiras de vinho. o vinho tinha gosto daqueles baratos, ruins, frutados demais. depois descobria uma taça melhor. queria me embriagar e não conseguia. ninguém tinha pena de mim.

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me vesti como a rainha elizabeth ii, mas o vestido era transparente e muito curto. tentava escolher as jóias, mas acabei optando por uma combinação muito extravagante: todas com pedras vermelhas. tirei e substituí por uma gargantilha de pérolas preciosas. me sentia ótima com aqueles conjuntinhos de uma cor só e todos diziam que eu ficava realmente parecida com ela.

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sonhei que estava em uma parte da cidade onde tem um bar que eu frequentava. algumas pessoas estavam se organizando para uma festa, um monte de garotas que eu já vi por Natal e elas estavam todas vestidas iguais, como se para amadrinhar um casamento. em algum momento, acompanhava essa festa de longe, mas com alguns adultos e idosos que eu não conheço. conversávamos sobre araras e papagaios. havia muitos por ali, livres e enormes. alguns davam bicadinhas amigáveis em quem passava, mas eu sempre tentava ficar à distância. também falamos da dificuldade em sobreviver nesses tempos sobretudo financeiramente. e eu me lembrei dos meus pais e da minha irmã. nesse entremeio, eu ganhava algum dinheiro de algum benfeitor e pensava: vou comprar uma máquina fotográfica. vou anunciar que quero comprar uma máquina semi profissional e para isso preciso ter pilhas. então eu procurava uma tomada para colocar o aparelho que carrega pilhas no meio da festa. encontrava, mas alguém tentava roubar. eu insistia que só precisava de duas pilhas, então que levasse as outras duas e me deixasse com duas. o algoz aceitou o acordo e eu contei sobre isso em uma sala de aula, onde encontrei alguns dos meus piores alunos quanto à disciplina, todos juntos, como naquele dia em que dei a aula de recuperação final. foi um susto, igual aquele dia que passei por uma gaiola de papagaios e eles gritaram.

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3 partes de sonhos de uma mesma noite 
1)
sonhei que visitava Thalita no seu apartamento novo. era numa rua de barro, primeiro andar e uma varanda bem larga. apartamento amplo de um cômodo só, rústico, com uma cama na sala. eu sugeria que ela colocasse a cama acima dos degraus, à esquerda da sala, pois assim seria possível pendurar ao redor uma cortina que isolasse e desse o mínimo de intimidade ao sono. era uma vizinhança barulhenta.

2)
em uma casa de praia que fazia as vezes de Muriú ou Barra do Rio, o filho de um colega com apenas 3 anos nadava na piscina de 1,5 metro de profundidade. ele nadava bem, não inspirava medo. nesse momento, Maria Helena, minha sobrinha, tinha uma média de 3 anos também. convém mencionar que eu só a conheci aos 7 anos de idade. ela estava muito leve e feliz, brincando com outras pessoas. quando fui brincar com ela, propus que escrevêssemos uma história e ela começou a ditar para que eu registrasse. o nome da história era "A galinha" e eu até brincava que, na capa, ao invés do nome, desenhássemos apenas a letra H e uma linha do lado. ela não entendia a piada, porque só tinha 3 anos.

3)
estava no quintal da casa da minha avó Primina e era um quintal com uma piscina enorme, mas rasa. essa piscina era de algum fluxo de água natural represado para as crianças brincarem. de longe, se via algumas quedas d'água não muito altas, mas excepcionalmente bonitas. eu tentava tirar uma foto daquele azul e, como em todo sonho que eu tento tirar uma foto, ela ficava feia ou tremida. nesse sonho eu encontrava tio Walter e ele estava bem animado, só muito gordo e barrigudo. não me lembro de já o ter visto tão pesado, sua barriga ficava muito apertada numa camisa polo. tio Walter e minha avó já morreram.

*
atravessava uma parte de Natal a pé, partia do Baldo ao Paço da Pátria, subia em direção ao Alecrim e seguia pelas Quintas até o Bom Pastor, de volta às Quintas e, de novo, Alecrim. na parada de ônibus principal do Alecrim, em frente ao teatro Sandoval Wanderley, encontrava uns conhecidos da internet e nas Quintas via, entre as dunas, um pôr-do-sol belíssimo que, para variar, eu não conseguia registrar em foto. estava descalça durante todo esse percurso. e sozinha.

*
sonhei com dois artistas que não conheço, mas que acompanho em redes sociais. um deles é a ex-namorada do romancista suicida. no sonho, eles cantavam uma música profundamente triste e que encheu os olhos de lágrimas de todos, inclusive os deles. me contavam que o rapaz também havia perdido uma companheira deprimida para o suicídio. depois víamos alguns trechos de seus ensaios em uma tevê, ambos sempre com os olhos vermelhos de chorar. entendi que a dor os uniu, mas o que eu tenho a ver com isso? será que tenho pensado demais nessa autoimolaçao? 

*
sonhei que era perseguida por um ouriço do mar, em um mar de cor amarronzada.

*
caiam águas-vivas do céu.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

ASO

Numa tarde de verão, espero na clínica 
escoro uma cadeira de plástico 
sem encosto de braço 
na parede encardida 
       e fecho os olhos

é o momento de ouvir a vida elementar
perguntas genéricas — peso, altura, telefone 
medição de pressão arterial 

       ventilador empoeirado       e pendurado
a cada indagação se está entrando ou saindo
"de quê?", eu me pergunto sabendo da resposta
e reconheço na respiração a privação
de quem vai ao caixa com penar 
 
é também uma provação aguentar tudo 
e ainda estar apto para trabalhar

abro os olhos e mapeio o acesso aos celulares
cada qual com uma película diferente
proteção de nossa personalidade

penso durante a espera como são os trabalhadores brasileiros 
os únicos a prestar homenagens aos artistas
       com o nome dos seus filhos
e a mentir para os médicos que não olham 
os olhos da gente
       eis o nosso triunfo  

aqui é o lugar daqueles que lidam com os últimos 
       de uma boa espécie
os celetistas
verdadeiros contorcionistas
       da máquina não lírica 

qualquer outro que aqui não pise
oblitera a jurisdição da melhor piada
sobre este ou aquele partido político
       ou sobre a Terra Prometida
a aposentadoria
disfarçada na pobreza
       imantada

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Copyright para Herberto Helder

 de carro, paro na sombra
alguma coisa obsessivo-compulsiva 
com o volume do programa no som
        é preciso contar por múltiplos 
de cinco
o assunto agora é qualquer coisa
espacial 

escuto na rádio novidades da Via Láctea
no volume vinte
como estão repletos de notícias 
os outros planetas  
        e tantos há que qualquer um pode descobrir
cinco 
por dia
então procuro as tais fotografias 
do quinto planeta - Júpiter 
        
       entre as fotos, qualquer trato 
impressionista 
de quinta 
a fotografia do carrossel é um zoom
        não se vê o planeta todo 
frame
um prato de macarrão ao sugo
tempestades de fogo
a Catânia

desde a última enxaqueca 
        cinco buracos no crânio eram suficientes
para expulsar as dores os demônios 
na Terra
há diversos buracos semelhantes 
e em Júpiter é impossível 
        ainda assim havia brasa sem emissão de carbono 
sem as máquinas é ainda mais bonito 
que as novas imagens do Sol
importantíssimas
descobertas
subliminares
                     uma tevê sem sinal 

estar debaixo do fogo dessa estrela
o Sol
é difícil  
       mas não contaram como é pior a brisa das cinco horas
quando saímos queimados 
pelo ouro 
tolo 
       sangue do ofício

A filha preguiçosa

minha mãe - a sexta filha nascida e vingada
      certamente a mais bonita de todas
saiu cedo de casa para trabalhar 
talvez por isso suas atribuições domésticas
não fossem tantas durante a adultez
e da infância não lembra muito 
       trauma luto complexo pobreza 
       são engenhosos a apagar memórias 

ela ainda não gosta de limpar a casa
       nem eu
e ao cozinhar acha sempre insosso e sem graça
       já eu acho tudo muito bem salgado ou primoroso

minha mãe nos criou para estudar e trabalhar
       é isso o que fazemos de melhor
então sempre houve briga em questão de louça 
sem acordo ou gentilezas 
nunca lavamos a louça inteira, digo, eu e minha irmã 
       as panelas ficavam para minha mãe

fico tentada em deixar as panelas até hoje para ela lavar
não lavo todas, sempre deixo uma 
para que ela comente
       ela ainda não lava as panelas 
a minha pequenina preguiçosa 


Dia de cão

Para Meg

Nesse verão incendiário 
depois do almoço, deitar ao sol 
deixar que os novos 
comam o resto dos ossos
e voltar somente quando me chamarem
para catar os carrapatos 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Susto do cão

O cão pega um susto e corre a mim
nada que se ver ou ouvir
então ligo a tevê, que ela espanta fantasmas 
ele coça obsessivamente as orelhas 
lambe as bolas escuras
as patas se enroscam comigo na cama 
não é um cão de pedir intimidade 
mas não para de me olhar nos olhos
desço os degraus para trancar as portas 
ele me segue por cada passo
vejo sua sombra e seu reflexo na cerâmica 
cão estranho, me mete medo 
chamo-o de príncipe ou ursinho 
para lembrar de ser alegre e brincalhão 
não funciona e ele se assombra
humanos ou fantasmas, damos aos animais
pesadelos
esta casa vazia também me põe medo, cão
e eu entendo sim de pesadelos
por isso mesmo só há receita 
para tua salvação


Pedra filosofal

Segunda-feira num acesso de tosse acordei
fazia dias que não olhava para fora
nunca fui disso mas estava arquejando
e escutei uns risinhos muito discretinhos 
espiei pela janela e dois adolescentes passaram
com as lanternas dos celulares
por detrás do bloco vizinho
logo voltaram com uma pedra enorme
e o garoto magrinho e efeminado, uma gracinha
começou a arremessar a pedra com toda a força
um completo brutamontes 
em direção ao chão e eu fiquei perplexa 
queria saber por que estavam fazendo isso 
àquela altura da noite
a cada pancada na pedra, mais risinhos 
eu também passei a rir e quase me engasguei 
em outro acesso de tosse mas não queria tossir
e perder meu disfarce atrás das cortinas 
quando conseguiram produzir algumas rachaduras
com o martelo, o garoto criava faíscas e a garota tinha medo
porque uma nesga daquela pedra voou em seus olhos
pude escutar então põe seus óculos 
como se fosse uma ideia genial 
melhor riscar os óculos que a retina 
e eles ficaram até próximo da meia-noite nesse trabalho
sem hora extra e insalubridade
era a primeira lua cheia do ano
e eles quebraram a pedra 
como mineradores experientes
lasca por lasca em batidinhas cuidadosas 
vez em quando conferiam se não havia ninguém nas janelas 
eu que sou muito esperta 
troquei de janela três vezes
para não constranger 
nem eles nem a pedra impávida
contra a luz da lixeira coletiva 
tomava forma de sonhos e aventuras
acreditavam, decerto, que tinham encontrado naquele jardim
cheio de sapos uma jazida desconhecida
da mais preciosa gema - aquela energizada
de juventude eterna

Segunda-feira

toda segunda escrever algo novo talvez não dê
disse o paulo leminski que também queria uma
leitura mais crítica de tudo o que ele escrevia
muitos textos muita veneração leitura de vovó
está tudo lindo genial precioso me atravessou 
é impossível escrever tanto e ser tudo muito
bom mas pessoas gostam de nomes distintos
uma ascendência polaca italiana alemãzinha 
uns gueri-gueri adoentados parecem intelectuais
gracinhas políticas extraindo minérios todas as
segundas-feiras sair no jornal efêmero de 24hs
de todos os leitores importantes e igualmente
passageiros o imenso poeta contemporâneo 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Son of Sam

(em resposta à Ana Rüsche)

Estraçalhar coleguinhas ou namorados 
é a mesma coisa
mas você é muito bélica

não entende de delicadeza

O herói da minha infância
escutava os cachorros


segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Recauchutar sapatos adequados para a montanha

para povos antigos, a magia residia
onde ninguém alcançava 
na montanha imprudente
na araucária pretérita para a cachaça
quer dizer, não há mais magia na terra
já que alcançar o cimo da árvore 
ou a topografia espinhosa da cordilheira
é apenas uma questão de brios
lidemos com o real, enfim
esta última zanga dos deuses