segunda-feira, 30 de maio de 2022

Esconjuro

Criada na maldade do silêncio

aposto que você se engasgou quando viu

Susan Boyle entrando no palco

e pensou como era ridícula aquela mulher

insegura e feia demais para a televisão

e se surpreendeu — quando ela abriu a boca

para cantar uma música que você não conhece


I dreamed a dream com aquele tempo que passou 

Quando as esperanças eram altas 

e valia a pena viver


Mesmo uma pedra

que não mete uma frase qualquer em francês

no meio da sua literatura

sabia mais que você

Eu sonho

no fim do dia o vizinho anuncia
a chegada 
        do bocejo 

        eu sonho

depois da torta na cara 
        da Gioconda
com as pedras de enxofre 
        de Sodoma 
o escuro
da rua de casa
onde portas respiram
        e o abdômen
expande e explode

mas aí já é
        outro sonho

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Três documentários

1.
Susan Sontag comentou, certa vez, que o escritor é aquela pessoa que se interessa por absolutamente tudo o que se passa no mundo e que, por isso mesmo, é tão difícil morrer. Ela que driblou duas sentenças de morte porque se interessou em saber que havia médicos em algum lugar do mundo que insistiam em quimioterapia. E ela estava certa, apesar de que, na terceira vez, ficou impossível fugir do diagnóstico. 

No documentário Regarding Susan Sontag (2014), dirigido por Nancy Kates, é um pouco controversa a forma como é narrada essa certeza na vida. Na primeira cena, vemos Susan falando o quanto ama a vida, mas, como uma narrativa documental, terminamos o filme com a impressão que era pura arrogância da autora gostar de estar viva e querer estar viva. Essa impressão é corroborada com uma série de depoimentos que levam a entender como Susan acreditava - segundo a narrativa, erroneamente - que poderia chegar ao "panteão" dos grandes escritores e que havia algo divino reservado a ela nesta vida, coisa que a frustra durante a idade mais avançada, ou pelo menos é o que dizem. Quando sai o livro Sobre a fotografia (1977), alguém chega para elogiar a edição e ela apenas responde: "mas não é tão bom quanto Walter Benjamim, não é?". E o seu interlocutor concorda, tentando amenizar afirmando que é a melhor obra escrita no século XX pós-guerra. Quantos filtros!

Por si só, essa forma de construir uma Susan como uma pessoa iludida é incomodamente contraditória e, ao mesmo tempo, cabal sobre o que o documentário mesmo questionava acerca da recepção das obras dela. Como se tivéssemos ali o seguinte quadro: essa é Susan Sontag, uma intelectual extraordinária e nosso exemplo para provar que ninguém é extraordinário. Por que não se pode chamar uma mulher queer - com a licença do termo contemporâneo - de extraordinária? Porque a mulher sempre tem que parecer alguém que não foi capaz de alcançar tudo o que acreditava que a ela estava destinado. Acontece que isso diz muito mais sobre uma misoginia estrutural do que ela de fato fez. E fez muito além do que o suficiente. 

É assim que, no documentário, não há algo elementar para se contar a história de Susan: o erótico, mas tão somente o hermético, porque não há nenhuma novidade nessa estrutura, nada que nos assalte ou fleche de súbito.

Susan Sontag era o próprio Eros quando escrevia e vivia, um ousado cupido, inclusive em toda a sua rebeldia. Quem, além de um gênio, ficaria triste por não ser um gênio? 

Susan Sontag, por Peter Hujar (1975)


2.
Em uma das cenas, ela aparece ao lado de Agnès Varda, em um programa de televisão e Susan está respondendo a pergunta, enquanto Agnès está fumando um cigarro no estúdio. É uma cena que sinalizou para o meu algoritmo, até porque cheguei a esse documentário pesquisando no aplicativo da HBO Max por Agnès Varda e não há nada dela na plataforma que não seja essa cena com Susan Sontag. 

Pesquisei no streaming porque, no dia anterior, assisti a Visages, Villages (2017), filme da Agnès Varda e do JR, fotógrafo francês que a acompanha com muito humor e compaixão. Nesse documentário indicado ao Oscar em 2018, eles circulam por alguns vilarejos da França para estampar em paredes um pouco de vida. Fotografias de pessoas comendo pão, o rosto de uma descendente de um minerador, peixes em uma caixa d'água, esposas de trabalhadores, um bode com cornos, Guy Bourdin, os olhos e os pés com uma unha minúscula de Agnès. Entre todas essas imagens, uma em especial se ausenta e, por isso mesmo, fica para o final do filme. É a imagem de Jean-Luc Godard, ao qual Agnès se refere desde que viu que JR não tirava os óculos (este também não tirava o chapéu). 

Godard não só deixou de atender a porta de uma casa hermética, blindada, quanto também se deu ao trabalho de deixar uma mensagem escrita no vidro de entrada. São duas ações decepcionantes e, mesmo assim, Agnès responde a mensagem desenhando, ao final, um coração. Esse é um momento interessante, quando ela se deixa mostrar todo um percurso humano de reações: mágoa - tristeza - entendimento - aceitação - ressignificação. Isso poderia não ter entrado no produção, mas estava lá e quem assiste aprende um pouco que a ausência das pessoas no momento em que contamos com ela pode ser tanto uma punição maquiavélica quanto um traço performático de algum artista escorregadio. Imagino que seja por volta da velhice que podemos aceitar tal rejeição com tamanha resignação e "bola pra frente". É porque, talvez, o que esteja à frente seja tão pouco que é melhor não perder tempo. Eu chorei sem lágrimas do início ao fim.

Quando não se tem muito à frente, é preciso "aprender a esquecer". Foi essa resposta que Edwin Honig disse ao seu sobrinho quando este perguntou: se você tivesse a audiência de todo mundo, o que diria? É uma resposta um tanto óbvia, já que seu sobrinho filma essas respostas no agravamento da doença de Alzheimer do tio. Edwin foi um poeta, tradutor e professor nos Estados Unidos e não tem nenhuma página da Wikipédia em língua portuguesa, mesmo ele tendo sido responsável por traduzir muito do Fernando Pessoa para o inglês. Mesmo tendo recebido uma medalha de reconhecimento pelo trabalho em língua portuguesa pelo presidente de Portugal. Também recebeu honrarias do rei da Espanha. Mas ele não tem uma página na Wikipédia em nenhuma dessas duas línguas (na verdade, em espanhol tem, mas não é completa, é mínima a quantidade de informações).

"Visages, Villages" (2017)


3.
O documentário First cousin once removed (2013), dirigido por Alan Berliner, sobrinho de Edwin, fez parte de mais uma convergência do "meu algoritmo", como diz meu marido. Funciona como um mosaico que retrata o percurso da doença de Alzheimer no poeta, que continua proferindo frases fortes e de impacto, como "As folhas são os imperadores do tempo", ou coisa semelhante. Há algumas cenas desse filme que são muito dolorosas, sobretudo quando Edwin já não consegue articular uma palavra sequer. Ou quando ele não entende mais o que significa amar e pergunta: o que é isso? Logo o espectador é tomado por uma compaixão, um repúdio, uma pena. 

Um ponto de virada muito importante na estrutura dessa narrativa é quando vamos descobrindo, junto ao Edwin, que ele tem filhos. Ele e sua segunda esposa adotaram dois bebês e ela conta o quanto ele foi um excelente pai de bebês, mas que, quando as crianças passar a ter o mínimo de independência, ele se tornou um pai cruel. Um dos filhos aceita ir visitar o pai e afirma que todos esses nomes importantes da literatura, traduzidos pelo pai, como Fernando Pessoa e Miguel de Cervantes, são conhecidos por ele na mesma medida em que despertam o pavor, são como espinhos. A mãe desses filhos disse que não consegue mais ler poemas por causa dos traumas com Edwin. O outro filho sequer consegue priorizar o pai para uma visita mesmo no estado terminal em que ele se encontrava. 

Nesse momento, percebemos que intimamente - no trato doméstico e familiar - aquele homem que estávamos sentindo compaixão foi, na palavra de um dos seus filhos, um "asshole", um cretino, um cuzão. Que ele pode agora estar imitando o canto de um passarinho ou lembrando do irmão que morreu, mas que em boa parte da vida foi um cretino com seus filhos e ex-esposa. Que foi um professor compassivo, mas abandonou a família.

E ele tinha um livro de Susan Sontag na mesa de trabalho. 

First cousin once removed (2013)

_
Um dia eu disse, na psicoterapia, que estava desesperada por histórias reais, para poder preencher um pouco da apatia e do desespero dessa fase deprimida. Para poder entender como outras pessoas queriam viver, mesmo sentindo, naquele momento, uma completa falta de conexão humana e um isolamento aterrorizante. Comecei por todos os filmes que eu mais gostava, aqueles que me tocaram de alguma forma inesquecível - não necessariamente obras-primas da crítica. 

O fabuloso destino de Amélie Poulain. Na natureza selvagem. Harry Potter. A casa do lago. 

Ali me dei conta de que todos eles narravam histórias de pessoas solitárias que procuravam conexão. Reconhecer esse padrão foi assustador, porque eu gostava desses filmes exatamente em virtude da identificação, de me ver representada ali. Então eu fugi da ficção, que sempre me ajudou, para os documentários. 

Ainda não voltei para a ficção e não consigo ler poemas. Mas li Olivia Laing e Brené Brown, esta que chama de Gremlins os pensamentos que a sabotam. Em Gremlins 2, Susan Sontag é mencionada. Ela é o meu para-raios. Com os raios.

Gremlins 2 (1990)

terça-feira, 17 de maio de 2022

Despertador

I
acordava em casa
com o barulho da minha mãe martelando a carne
na tevê a Fórmula 1 
depois meu pai ligava o som
começava um dueto com uma latinha barata
então eu tinha que levantar 
olhar todos os anjos de gesso que colecionava
e reclamar do barulho enquanto via
que a casa estava sendo pintada 
de cinza

II
ali eu descobri que a mesma mão 
que eu segurava até adormecer
arrancava carrapatos do cachorro
e estourava com a unha
essa foi minha primeira lição de morte

III
nossas mãos são também animais judiados
anjos que precisam de calor
e qualquer coragem
para pintar a casa 
de amarelo