terça-feira, 12 de novembro de 2019

entrar,
sentir as pedras ocres e o calor liso
das paredes que nos guardam

ficar,
não entre mis abuelitas que, pelo sangue,
jamais me permitiram palavra

ficar,
com o decoro de que devo conhecer
a irritadiça e sublime mestra

ir,
este rastilho cheio de sulcos e desamparos
de indomável raiva e sossego

itinerário para as cinzas

o domingo de nossos dias
preenche o que ouvimos:
sons desconhecidos e acertados
na escuridão oblíqua da sala de estar

o pouco de duran duran,
de café,
e de suede

*
neste dia de nossas vidas
qual clichê doce novembro
transmuta-se em um quê de glória eterna
e também de despedida

o tanto de nostalgia,
incêndios,
e de retinas encarnadas

*
o vale do pitimbu marcou nossos carros e
brônquios,
em uma irreconciliável
ternura

no entanto,
o cenário de buracos, serras, pássaros e árvores
começa, então,
seu itinerário para as cinzas

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

inarredável
palavra-estanque repetidamente acionada
quando se vem da época do rei
e vive-se o gozo psicanalítico da intoxicação

é uma pena, f.,
que nunca tenhas conseguido embriagar-se

é uma pena, a.,
que não se tenha decolonizado teu sentimento
sempre chamando pelos seus pobres
imigrantes

inarredável pede que se seja
a reverência, o escarcéu,
o comunismo
e toda a literatura russa

mas não nossa história

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

o labirinto inflamado
não é razão para tremores de visão
mas pequenos terremotos me desequilibram
quando a pressão se expande, o terror
um besouro frio de atravessar o crânio

(o tiquetaque permanente de pripyat)

nesses tempos,
desprezo a paz nunca nunca a paz
assim as pessoas sempre foram sem e em comunidade:
como um erro hippie
helter skelter
como um erro histriônico
son of sam

(deliro com uma mosca rondando meu expediente)

naquela passada tarde qualquer
eles recebem tiros de cima
como o augúrio de matrimônio à porta da igreja

diz o menino
eu não gostom do helioptero
e desafia o próprio peito a toda morte

(no tica-tica permanente dos pátios
quem protege os meninos?)

que há com os barulhos errados
que miram na maré, no mosquito
corpos tontos e mortos
para as valas daquele labirinto?

onde cairemos todos nós?
quem nos arremessará arroz?

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica

(Caetano Veloso)

com os olhos abertos do tempo
na costa, a areia se move em direção ao oriente
súbito resquício das restingas ciganas

[um degrau se formou dos ventos alísios]

qual gelo seco, a praia em alguns anos não existirá
como também os respingos do teto não lajeado
não serão permitidos, pois uma vez que flutuem, serão corais

o zunido do vento por entre as frestas das telhas não entoará a canção da viagem
o amor cantará apenas aos ensurdecedores  pobres glaciares que desmoronam na américa latina

continente invertido de torres garcía inverterá mais quanto
até a redescoberta do mundo em serra caiada?
a única rocha a permanecer desde o período do gelo
e que não será, então, encoberta pelos bilhões de anos de calor

[um degrau se desfez abaixo do nível do mar,
nele caímos entre neuroses e nepotismos]

enquanto toca clara nunes em um samba qualquer,
américo vespúcio descobre seu nome yanomami
e canta junto que vai-se embora desse mundo de ilusão

mas os peixes já não nadam para longe, voam
e nossa américa não conseguirá provar que o norte é um imenso blefe
e que seremos também, quando menos esperarmos
espíritos voadores nos mares do oriente

sexta-feira, 7 de junho de 2019

tessarine

"e o poema acontece diante os olhos os ossos"
(nina rizzi)
já que há dois olhos:
trabalha-se
e lê poesia:

um perfumista que inala café, mas não para esquecer
uma barista enojada servindo alta mogiana
os jovens flanando sob uma fotografia risível

o animal espreguiçando se aninha a alguém
cujo tom da voz espalha feito canção

[mas o silêncio espaço mãos músculos
é que atrofia]

as casas numéricas do pi,
o hiperbólico:

há quantos olhos para ver poesia?

quarta-feira, 29 de maio de 2019

tula pilar

o coração da poeta parou
e da porta só cantou a vontade
das longas odes e marchinas de carnaval sobre queimadura de óleo
e marcas na blusa
logo abaixo do umbigo

recostada ofegante no portão de carolina de jesus
é, pois, acolhida
com um abraço brilhante que só aquela cor tem

o coração da poeta
não quer mais a azia subalterna
ouvida ainda no front dos saraus
das casas-grandes

o coração da poeta
reluz o ouro
inacadêmico
inacabado
e migrante
polido propriamente por uma garimpeira
da antiga Canindé
hoje, marginal tietê

segunda-feira, 13 de maio de 2019

I)
os pássaros pretos aprendem a atravessar a rua
sob um viaduto imundo num vale do pitimbu
olhando nos olhos de quem dirige a máquina do tempo
quanto, decerto, morre-se
para que a memória aprenda
a sobreviver?
qual cor além da preta anuncia
em canto ou voo
o impermanente?

II)
a juventude cansa-se para poder retornar
tardiamente
em aventuras e tempo perdido
aos dezenove anos, o terreiro do paço refletia o incômodo tão branco do esquecimento
ao mesmo tempo em que se buscava ler em línguas antigas o clichê do lembrar

"memento" alguma coisa

sobrecarrega-se de passado aquele dia, cujas leituras
abrem altos cânions para as sepulturas
por onde correm as histórias familiares,
mas pergunta rachel de queiroz "que importância tinham o filho, a vida vivida, diante daqueles dezenove anos?"

III)
quem presencia os acontecimentos é aquela carpa ornamental,
presa a um aquário
por duzentos e vinte e seis anos
cheia de anéis e brilhos enormes
aqueles olhos profundos que aprenderam a olhar
comidas caindo próximo a si, vendidas em saquinhos
por alguns míseros metais

outros animais em fiordes escuros também aprendem a ver
por séculos a fio
o opaco brilho do fundo

mas o homem sem sombra
esquece-se rapidamente e prende-se à esperança de que,
ao abrir o túnel da mítica passagem
da mentira para a verdade,
inaugure seu momento glorificante de expressão de ser
a própria anamnese
mesmo quando já não há um porquê
e, nesta ocasião, os papéis já estão sendo assinados
o padre se retira

IV)
lembrar-me do que repudio refere-se apenas a mim
não ao outro
a via crúcis dos diversos rostos que tive
e bocas mutiladas
e mãos exageradas
e caminhadas descalças
e embriaguez
e cabelos sem formato
e esperas em hospitais onde não estive
e as cidades esquecidas
e a cor secreta de um humor
e a ausência dos que vieram antes

rememorar a mácula das grandes guerras
e as íntimas mágoas
não se nega o exercício de lembrar da beleza, a qual não definir a quem se refere
é a regra

mas a natureza morta
e "os pobres ventos no burro da noite"

(a quem, sim, uno:
o olhar de H.
e como ele me diz que essa ira passaria caso visse a lua)

V)
toda ancestralidade se inicia em uma linhagem
ponho-me em dúvida
se a minha inexiste
ou se debuta

VI)
relembro a H. os tempos tristes
e sempre há três canções que rondam
as lembranças

uma de amizade
we'll make a pact
to never speak that word again

e outra de um parasita da cidade
lifting the mask from a local clown
feeling down like him

por fim, a terceira como dossiê
Minha América, minha terra à vista
Reino de paz se um homem só a conquista

VII)
a paleontologia dos cães
junta tristezas sob o sol
assim treino as várias faces que brilhavam
a luz branca da prostração

VIII)
gravar essas palavras a ferro
debaixo de pancadas de chuva como a sorte manda
e ainda todas se parecem
como um longo episódio televisivo sobre o inverno
algo que não me pertence
e um grandessíssimo
erro

segunda-feira, 18 de março de 2019

"estamos no limite do diálogo": uma série sobre não-comunicação

I
vulgarmente de pouca fala
algo nesta voz só se materializa
quando o outro é quem fala

é como uma memória antiga
de estruturas acomodadas e adormecidas

a mente do outro
translúcida em olhares e tons de voz
o passado não superado

tão fácil dizer o que se quer ouvir
assoprar a intuição na resposta defronte
e as pessoas receberem
como um estalo na alma
um beijo na testa
a terra é plana
e está tudo bem

ou passarem a mão como tubarão lixa
que mal não faz,
faz sentir
emociona
mas não se atrevem
a encostar outra vez
porque arranha

II
tão fácil
esse cárcere, mandado de segurança
confissões em capelas para o deus ausente
hermeticamente
em silêncio

III
de canto nenhum me ouviram
enquanto cantava qualquer em voz alta
liturgia para o grande nada

IV
peso-me à balança de vidro
com uma mandala de dor nas costas
bursite, tendinite, cartilagem rala
toneladas de quilos ganhos entre jejuns de fala
o incômodo à primeira vista,
tentação feminina infeliz
lembro do areal branco em movimento
redemoinhos de poeira
o peso da fala morta
que se consolida em alguns quilogramas a mais
em forma de útero abissal
e brasileira bandeira

V
não há nesta cidade alguém que compreenda
quando relaxada timbro a voz
sons de entranhas
verdades
sibilantes

VI
descobertas do banal:
algumas pessoas não tem sangue suficiente
para ouvir
implantam

implante
é quando me pedem para repetir:
dois é um número cabalístico

fraco, tenro, prostrado
raiz de todo o mal
"só voa o que tem peso": uma série sobre pesadelos

I
em uma passagem de tempo
dou-me conta como repito movimentos
algo quântico, ficção científica
entro em looping eterno na mesma cena:
tento gritar como naquele outro sonho dentro de um carro
mas de rouquidão as cordas vibram
verto-me em suor

II
fraudes são descobertas em meu nome
ainda assim, todas com ameaças à minha vida
sou sabatinada próximo de meu horário de almoço
e, quando chego à casa, há homens armados
homens grandes, armas grandes
neste sonho eu voo, mas lenta, como submersa
toda submersa sem alcançar o chão

III
tenho consciência da encenação
mas a força do que vejo me devolve a realidade:
uma mulher morta, sangue entre as pernas,
numa ruela-cenário
o julgamento dela, a absorção dos culpados
meu grito novamente sai rouco
a cena acaba, encaro as ruas com naturalidade
encontro os meus, cumprimento o assassino
não vejo mais a mulher

IV
sou demitida,
como um ramen
empurro a garota que veio antes de mim
saio chorando

V
menstruada no apocalipse
confecciono absorventes de farrapos e plásticos
e me pergunto o porquê que não acontece como ouvi falar
na guerra
as mulheres do front não menstruavam

VI
escalo varandas alheias
em uma delas, o dono vem armado com um taco de baseball
com pregos
e crava em sua testa o instrumento
em seguida, na outra mão,
mostra um cutelo
também cravando-o em seu crânio
fujo com H. e tranco o dono da casa por fora
sinto a dureza da fechadura auxiliar típica de portas
de apartamento

VII
uma escola inaugura,
mas na festa morrem mais de 70 pessoas
o norte como inspiração sempre será sinônimo de morte
atravesso o pátio de onde trabalho atrás de resmas de papel
mas há algo errado
e duas crianças armadas atravessam sorrateiras as mesas da cantina
onde tantas outras lancham aquela marmita preparada pela mãezinha
uniformizadas diferentes,
entram na turma dos que tem 12 anos
e matam 2 deles
ficamos felizes por não ser 70

VIII
xingo minha mãe em seu aniversário
como já aconteceu

IX
algum sonho mágico-erótico
gozo
mas, em seguida, surge em mim um pênis e testículos enormes inchados
mal posso caminhar
pergunto-me se é por isso que homens não fecham as malditas pernas
em local algum
pergunto-me se este é o meu castigo por gozar e
por que infernos um falo incômodo, como vou esconder isso?
pior pesadelo desta vida

X
o próprio necromancer
facções, joão dória, pílulas de algum alucinógeno
árvores queimadas, aviões caindo
a brincadeira de criança com uma bola flamejante
distopia completa em horas de sono

XI
pari em pé uma criança enorme
e a deixei aos cuidados de uma tia distante
mas me culpei, claro
e a resgatei, amamentei
ela me julgava com um olhar inesquecível

XII
facções de cyberpunk em muriú
levando-o de bicicleta a ser salvo
eu me salvo
ele está com ranho na cara inteira
ao lado de um homem com a braguilha aberta
choro muito e quero morrer

XIII