domingo, 18 de abril de 2021

Memórias do subsolo

    Ler 120 páginas do Dostoiévski, "Memórias do subsolo", mas, antes disso, adormecer com o livro aberto e continuar preenchendo a narrativa de olhos fechados de tão afundada na história que se pode chegar. "Sempre terei o subsolo" é um verdadeiro consolo, porque quando dou por vista, já me lembro de um garoto chamado Júlio César, com a barriga proeminente e poucos cabelos na cabeça, como agora já me parece meu aluno (e provavelmente sejam as mesmas pessoas infames nos anos iniciais de colégio) que pôs um pé para que eu mergulhasse diretamente ao chão quando eu tinha por volta de 7 ou 8 anos. Neste dia, eu me dispus a ir buscar o som para a professora, que colocaria alguma música para que nós ouvíssemos.

    Tão rápido quanto caí, levantei-me e fui engolindo um choro dolososo por conta da fratura que se fez em um dos meus dedos da mão. Busquei o som, por uma questão de honra muito forte que sempre tive e voltei à sala, ainda com muita dor. Mas não há honra na dor e logo me pus a chorar, quando vi que meu dedo assumia um tom roxo e aspecto inchado, a ponto de não ser possível mais flexioná-lo. Assim foi a minha primeira e penúltima fratura no dedo, sendo necessária uma camada de gesso e muito esparadrapo e gaze.

    Também lembro do cheiro da minha mão depois de retirar o gesso, um odor adocicado e úmido de algo há muito guardado, e a textura da minha pele, que mais parecia uma esponja e ainda não era totalmente possível fechar a mão em um murro que sempre foi o meu grande sonho poder dar em alguém. O que me serviu para aprender sobre a dor e sobre a honra, pois, anos depois, em um dia de treino de esporte, ainda na escola, desta vez não foi o pé de nenhum algoz, mas aquela coisa desumana que é uma bola de vôlei, em conluio com o erro do tempo. Desta vez eu já sabia manipular a dor e imobilizar o dedo, o que fiz com palitos de picolé e algum esparadrapo que havia guardado em casa. A dor não cessou por dias, precisando, novamente, que a honra fosse junto ao esgoto do consultório de um médico ortopedista.

    Dessa última fratura, considero uma vitória aleijada, já que havia se passado tantos dias desde que ocorrera, que o osso fraturado se calcificara sobre o outro, formando um todo para sempre inchado. Um caroço no meu dedo e assim vivo até hoje. E este dedo dói sempre que chove, o que me lembra que "nasci sem nojo da dor", como diz Clarice Lispector. A mão do murro hoje já consegue se fechar, apesar de continuar vazio o alvo, não a vontade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário