quarta-feira, 7 de abril de 2021

Sílvia,

 I

Lívida, você acorda com o cordão de prata arrebentado e olhos inchados de alergia. É possível ser, em parte, a poeira do roçar da nuvem, o concreto armado, o ranço. Presa à maçaneta de uma porta, de metal frio e grudento, a mosca é atraída pelo cheiro de suor e abandono. É possível, então, acordar desta maneira? Esfregando as patinhas sem cerimônia? O olhar estreito, o olhar deformado. O caleidoscópio. 

Na ciclovia, o bebê sustenta um olhar para mim, este que já tem seu método, não olhar para corajosos. A maçaneta fria e grudenta tira pequenas lascas de pele morta que se deve deixar de rastro. Digitais, em todo caso. Da mosca, não. Suas palavrinhas são emplastros, moldam-se à pele ferida, tatuada. Gritinhos, ou o barulho de ovo fritando. Experimente escutar o ovo gritando. Ou a vocalização de uma surdez profunda. Experimente aceitar o silêncio. Nessa mão que segura o bebê e a lembrança do cigarro, lê-se o método. Como se desconjuntar. Como ajeitar os dentes para conceder a imagem. Como tingir o cabelo para enfrentar o tédio. 

Não se desperta desta maneira, ora numa cama, ora no impossível. A mosca atrai o sapo, que vem da chuva. Assim contam a história, com um beijo ou um canto. Assim conta tua história, sem aplacar as forças da natureza. Assim desperta das camadas de sono e da filosofia moderna. Assim sabe o que escondem os vazios, como se ganha uma guerra. Este é o caminho. Todos fingem, menos você. Lúcida, mastiga o anti-histamínico para alcançar o amargo. Encontra a palavra. 


II


Coleção de palavras desconhecidas. Escutaste o grito com teus airpods? Quando aquele ovo se estatelara ao chão, enche-se a boca de saliva grossa. Metros de papel higiênico para aplacar aquele cheiro amarelo e translúcido. Tanto trabalho para recolher e, ainda, toda a saliva se acumulando aos montes. Bíle. Um escarro esquisito.

Prontamente acorda de um sonho familiar. A casa da avó já morta, que há muito não lembrava de si. O gramado com bosta de animais concretado. Como as pontes e a praticidade de se fazer de âmbar para a posteridade. Pobres famílias que economizam os jazigos graças aos queridos empreiteiros. Mas ainda há as cortinas, aquelas janelas-portas. As cortinas brancas e bordadas.

Mesmo o familiar mais absurdo tem o tino para a arte. Jardinagem, reciclagem. Trocadilhos infames, ou nanquim em papel. Futebol, bebedeira, ciganismo, didática. Este léxico de quem sonha em outra língua, mesmo sem saber outra língua, revela tamanho tino. É preciso chorar diante do gato atropelado. É preciso viajar mensalmente para outra cidade para manter o segredo. Prazer - isto não é necessário.


III


      O que é a vida, senão acordar? Lembras daquele filme do Richard Linklater, cujas conversas vão desvendando um profundo despertar, ainda que este jamais aconteça? É que sonhar me parece como patinar num limo qualquer, verde de lodo ou de pus. Renunciar a qualquer biogênese, desentender-se com o mistério, visto que sempre haverá este tempo de cambalear, roncar, espasmar, morrer sem dor.

            Eis tua vida, a mim cabe imaginar. Fazer de mosaico, dar o tom da imaginação e da denúncia. Como acordar sob o teto de um desconhecido? Superar a vergonha, os cheiros, a universidade, o filho, a noite, as infecções, os quarenta gatos, o homem seboso, a memória da avó, o empenho para o nada, o professor, o pesadelo. Reivindicar todos estes sentidos, o vento egóico, a técnica, as ruínas. 

              Despersonalizo. Como o sonho, o tempo embica sua engrenagem para as margens, como este atual congestionamento no canal de Suez. No corredor da escola, me vejo de cima. Também na cama, na cozinha, no piche, segurando um volante, é reto o caminho. As pedras do canteiro da Avenida Omar O'Grady ainda estão quebradas diante da lembrança dos cachos sem vida. Horário marcado no salão, janela, colisão. As pedras daquele canteiro seguem deitadas, ninguém do Rotary se solidarizou com as pedras. Ninguém do Rotary a conheceu.


IV


Vaticino as chagas de Cristo. Ontem, cortei-me com uma faca, justo no braço que sinto coçar pelo traço reto, por onde, também, já esfreguei uma faca cega. Fé amolada. Rezar todos os dias quantos padres-nossos forem necessários para iniciar uma aula, lembrar de cada partezinha que me parece errada demais, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. E outras partezinhas tão certinhas, perdoai as nossas ofensas assim como nós não perdoamos a quem nos tem ofendido nos deixei cair em tentação não nos livre de todo o mal. Eu peço clemência.

As pontas dos meus dedos estão dormentes. Lembro, no ensino médio, de pedir para as pessoas puxarem minhas mãos, com mais força que puderem. Hoje, sei que já era a despersonalização. Amanheço assim e me pergunto como acontece com você. Já acordou assim, com alguma parte do corpo dormente, ou só com os gritinhos, só com o desconhecido? Lembra do réveillon, Lila e Lenu no terraço. Lembra Lila sendo arremeçada pela janela por seu pai? Os bichinhos vermelhinhos a acolhendo como um em um manto sagrado? Os tiros e o horror da humanidade? A ausência de margens, o tremor, a dormência. Não durma ainda.

Eu realmente queria que você já tivesse sentido isso, Sílvia, porque eu sei que sentiu.

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