quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Semanário

1.
ele vocaliza
em improvável descanso
o anu no nim

2.
regra do trabalho
não há teia sem o toque
também o descanso

3.
no poste elétrico 
câmera de segurança
novo galho verde 

4.
o medo adulto 
não silencia as crianças 
a chuva é trégua 

5.
pássaro viúvo 
sabe que ainda vai cantar
não fica sozinho 

6.
domesticar cães
é ilusão. ainda uivam
em coro selvagem

7.
na beira da praia
roupa, óculos e galho
o urubu carrega

A janela

a janela do escritório do lugar que vou chegando devagar há anos. a janela que se fez limpa, que foi limpa, abre-se para uma claridade limpa e clara e olhar pela janela toda aberta é coisa rara mas tão prazerosa, tão perigosa agora sem as telas. a janela descansa a vista que pesa musculosa, muito rijos estes músculos, os únicos desse corpo. e são musculosíssimos estes olhos já não querem descansar olhando através da janela limpa por onde entra a claridade do resto do sol ou das estrelas que brilham em formato antigo e que não saberemos jamais se é estrela ou máquina de homem.

Não acredito

não acredito que vou escrever para você
para te pedir justiça ao Esquecido
quanto desperdício ter essa máquina 
mas não serei pontual, isso eu me recuso 
não temos compromisso canino qualquer
não tenho interesse em catalogar novas espécies
talvez a gente pudesse conversar 
não sobre a linguagem, sobre as trevas
e sobre as pessoas que sentem vergonha


quinta-feira, 28 de julho de 2022

BR 101

na envergadura de um pé de cana
uma pessoa observa 
depois da chuva, as flores são brancas 
e isso é uma espécie de ilusão
entre o contraste do verde com o resto 
aquele verde pelo qual Belchior chorou
mas não era Belchior ali
naquele sonho, era noite
e eu estava deitada também 
no meio do canavial 
vendo as estrelas 
foi quando registrei essa paisagem
desde então, se vejo as flores brancas
da cana-de-açúcar
quero deitar-me entre elas
esperar anoitecer
e enfim ter coisas novas pra dizer

quinta-feira, 7 de julho de 2022

OS DIÁRIOS DE VIRGINIA WOOLF (1915 - 1918)

A primeira parte dos diários de Virginia Woolf, que li pela versão da Editora Nós, começa aos 33 anos da autora, momento que circunda a publicação de A viagem. Não vou fazer desse texto uma espécie de lista de referências, então sugiro pesquisar qualquer informação que esteja incompleta, afinal é Virginia Woolf, mulher que já teve sua história revirada e chegou até a filme com Oscar.

Falo dessa maneira como forma de imitar a escrita do próprio diário, em alguns aspectos ampliado pelos hiperlinks que explicavam a palavra e a referência. É um diário no qual era evidente o desejo de ser publicado, escrito por uma intelectual que acompanha e resenha livros e que sabe da importância de não precisar, necessariamente, explicar que James era Joyce, ou que Aldous era o Huxley.

Na psicoterapia, hoje, comentei uma passagem desse diário que acabei não destacando e agora não sei bem como está literalmente escrito, então é a minha impressão do que ficou. Há um momento em que Virginia e Leonard recebem um amigo que está visivelmente abatido e em uma fase ruim. De maneira cordial ao se puxar um assunto e também por sua inclinação fofoqueira, Virginia pergunta ao homem quem ele tem visto por aí. O interessante é que, na leitura, essa questão me saltou aos olhos. 
Virginia e Leonard moravam nos arredores de Londres, em uma cidade menor e, eventualmente, ela ia à capital simplesmente para ver gente. Tinha as obrigações e alguma luxúria na papelaria, mas, em geral, era para socializar. Há muitas passagens em que ela descreve a necessidade de ir a Londres para ver gente. 

Não era uma imagem que eu havia construído da autora até então, afinal o que se torna obsessão quando se trata dela é a questão emocional, o suicídio, os colapsos. Para uma pessoa com esse estigma, espera-se que seja no mínimo reservada, reclusa, silenciosa. Muito pelo contrário. Fofoqueira e maldosa, eu diria que é a forma como ela mais se expressa, além de muito engraçada e genial. Como menciona Leonardo Fróes na apresentação de "A importância do riso e outros ensaios", ela se envolve com questões do dia a dia. Ela anda à cata de vislumbres pelas ruas de Londres. Ela opina com força e destemor.

Voltando ao diálogo de Virginia com seu visitante, uma coisa muito comum em sua casa, ele, ao invés de responder com nomes de pessoas que teria visto, responde que finalizou uma coleção de um livro mencionado do qual não lembro a autoria nem o nome, mas a impressão é que ele se referia a uma coleção de vários livros difíceis e importantes. Quer dizer, Virginia pressupôs que seu amigo estava mal - e de fato estava - ao notar que ele não estava vendo muita gente recentemente. Acho (começando especialmente esse período depois de ler um pouco de Judith Butler, a academia pira) que essa passagem é autoexplicativa, se eu considerar meu estado atual de sociabilização. Não que eu demande tanto assim, mas é realmente fácil e rápido ser esquecido.

Para além dessas bad trips, que já trabalho semanalmente na terapia e diariamente nessa cabeça que é minha vilã e heroína, destaco alguns trechos que consegui marcar no diário e que muito me identifico, ou não.

________
“creio que o patriotismo é uma emoção baixa”

“começo a odiar meu semelhante, principalmente quando olho seus rostos no metrô. É fato: dá-me mais prazer olhar para a carne vermelha crua & os arenques prateados.”

“ruas apinhadas são os únicos lugares que me fazem, como-diria-na-falta-de-uma-palavra-melhor, pensar”

“além do mais tem a vaidade: não tenho roupa para ir”.

“e sei que nós dois pensaremos, quando tudo isso terminar, que de fato uma boa noite de leitura teria sido melhor”

“só cerca de uma pessoa me parece bonita a cada quinze dias - a maioria não me parece nada”

“como está fazendo uma noite bonita & razoavelmente serena, talvez amanhã eu tenha um ataque aéreo para descrever”

“Ora, com lareiras, luz elétrica, trens subterrâneos & guarda-chuvas, como alguém pode notar o tempo?”

“minha teoria é que eu alcanço aquilo que é rocha pura dentro dela, através dos diversos vapores & poros que enojam ou espantam a maioria de nossos amigos. É o seu amor pela escrita, acho eu” - Sobre Katherine Mansfield

“quanto do que pertence ao espírito é dominado pela imaginação” - acredito que isso é uma pergunta.

Quem tem medo de Virginia Woolf? Eu não. 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Fricção

(Depois do Selvagem - Ciclo de estudos)

Eu queria viver 
dentro do sonho de uma ave
na caatinga do Brasil braseiro
trabalhando com meus parentes
eu queria viver
dentro do sonho de uma planta 
trocando sangue, suor e saliva com a terra
para não fazer cair o céu 
eu queria viver 
dentro do sonho daquilo o que existe 
nas bolsas dos olhos de um Krenak
e sentir o gosto rio Doce
eu queria viver
no fogo do centro da roda
no sonho da montanha
e também de toda a gente 


segunda-feira, 30 de maio de 2022

Esconjuro

Criada na maldade do silêncio

aposto que você se engasgou quando viu

Susan Boyle entrando no palco

e pensou como era ridícula aquela mulher

insegura e feia demais para a televisão

e se surpreendeu — quando ela abriu a boca

para cantar uma música que você não conhece


I dreamed a dream com aquele tempo que passou 

Quando as esperanças eram altas 

e valia a pena viver


Mesmo uma pedra

que não mete uma frase qualquer em francês

no meio da sua literatura

sabia mais que você