terça-feira, 29 de setembro de 2015

contorno

dentre as principais coisas observáveis
com tamanho agrado estão:
o céu, a estrada vazia, os olhos dos meus cachorros
e o desenho do seu perfil

[lembro-me no teatro
como por minutos esqueci de dos amores y un bicho
e senti pela minha coluna todo o júbilo e lisonja
quando vi de tão perto o seu perfil]

investigava-o para chegar a isso
esse esquecimento dos tempos de guerras:
eu olhava todas as suas metades

era para isso, para encontrar todas as coisas observáveis com agrado
que eu flanava por todas as suas metades
pelas veias, por um ombro

mas, diferente do cavalheiro de shalott:
[talvez ache, também, que gosta de se reajustar]
half is not enough

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

pé de fixo 2

os barômetros na estrada
ferramentas únicas de guia do caminho
fazem como a principal lógica humana
de orientação espacial:
à direita, a ida/ à esquerda, a volta

o vento, a única coisa que vem do céu
que pesa sobre a terra
principal elemento de congregação de outros dois - terra/fogo

[queimar a cana e o lixo toda temporada
faz da força brutal da caatinga
o único sobrevivente aos pés de ficus]

toda a cidade desmoronará

de pé, apenas, o ficus 

de pé, acompanha a jurema

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

"não me esqueça"

n'alguma boa temporada
ficaste em silêncio, qual jogada de mestre
e o impulso do empréstimo às palavras
o apogeu do consolo
viu-se descuidado

[hoje, atendi o carteiro no portão de casa: 
multa de trânsito

hábil lobo, prendeu-me na rua]

*
o carteiro diz: fechei o portão para que seus bichos não fujam
enquanto eu assinava o papel

[hábil lobo, por isso o admiro
como esperou esse tempo e,

com a saliva quente
decide minha memória: 
não me esqueça, 
eu também sou você

não me esqueça,
eu também sou você, tânato, 

não me esqueça]

vi-me, portanto, nua, recordada e sem medo da morte

meus bichos nunca fugirão.

domingo, 20 de setembro de 2015

pé de fixo

sob toda pele, há sede

essas peles 
pensam no carcará
no muro numa calçada do oeste

pensam nos animais procurando uma sombra
sobre as árvores desfolhadas

também a calçada oca da busca pela água
das raízes do pé de ficus

[e o gavião-carcará na vigília de mais um bicho quase-morto de fome
cair sobre a terra
sobre a mesma sombra que não existe:
amor fati]

a pele que seca, racha, endurece.

essas raízes grandes exploradoras 
e essa sede não passa

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

para todas as crianças que fogem das guerras, sejam civis, diárias contra a fome, contra a sociedade que engole, etc

os pequenos pés das crianças
como balançam!

crianças nunca alcançam o chão
quando sentadas à mesa
e agitam seus pequenos pés
em tédio e expectativa

com curtos e frágeis passos,
as crianças nunca podem ir muito longe

no máximo, à praia

então, uma criança, na praia, brinca de pequenos zigue-zagues
de costas para o mar

desce-lhe o cansaço, certa hora
então, os pés das crianças balançam vagarosos no colo do guarda
ceifam o ar sem escolha, tédio ou expectativa

nunca alcançarão o chão

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

o mito do velho oeste

esta sujeira da BR que entra
pelas janelas mesmo fechadas
e pelo nariz, boca, pior que o fumo

qual fuligem que fica a resvalar como se pensa
e quando cobre dessa cor negra a mesa os cabelos que caem

quando se vive em um quarto
com doze metros quadrados
com paredes cor de fome

o rodo, a vassoura e as roupas no pé da parede
a parede.

onde estão os livros que em busca do tempo perdido
nunca li e sei de cor?

la prisionnière, não mais

fugitiva