sábado, 31 de maio de 2014

cai café

derramo café

um riso tão doentio
um riso medonho
aquele riso guardado
pelo tempo
pelo não-motivo
aquela gargalhada
e cai com o café
e talvez despenque
e cai comigo

riso carcomido

a cena:
três à direita
quatro à esquerda

jazz ao fundo

segunda-feira, 26 de maio de 2014

os cílios

os cílios que me asilam
são os cílios que protegem
as ogivas que são os olhos
destes homens ao lado
que, quando querem, silenciam
todos os mestres e as meninas
que se desfazem sob a marquise
que do sol as protegeria

eis os cílios que cantam sinas
e ditam as rotinas do meu asilo

são os cílios 
são os cílios

malditos cílios volumosos
cílios da seca
que me empestam
e quando oscilo
batem como os ventos
dos desertos, alísios 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

a cidade e o poema

a cidade de pedras rege
esses nadas que matam
agora reconheço os sons
e não são as cigarras

(me banho com as baratas)

meu caderno tem problemas
cujas letras parasitam
transitam pelos tais temas

(me enxugo com os mosquitos)

os buracos nos asfaltos da cidade
onde cabem todo tipo de problemas
aqui há um pouco de felicidade:
os espaços brancos do meu poema

terça-feira, 13 de maio de 2014

Exatidão: Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, p. 72

"Por que me vem a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? Creio que meu pri­meiro impulso decorra de uma hipersensibilidade ou alergia pes­soal: a linguagem me parece sempre usada de modo aproxima­tivo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ou­ço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não di­go a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta. A literatura — quero dizer, aquela que responde a essas exigên­cias — é a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser. 

Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atin­gido a humanidade inteira em sua faculdade mais característi­ca, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da lingua­gem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, co­mo um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fór­mulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significa­dos, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda cente­lha que crepite no encontro das palavras com novas circuns­tâncias.

Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epide­mia devam ser pesquisadas na política, na ideologia, na unifor­midade burocrática, na homogeneização dos m a s s - m e d i a ou na difusão acadêmica de uma cultura média. O que me interes­sa são as possibilidades de salvação. A literatura (e talvez so­mente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a ex­pansão desse flagelo lingüístico."

sábado, 3 de maio de 2014

minha boca

minha boca toma forma
a cor de tudo o que bebo
marrom, avermelhada
transparente, talvez pálida
ou quando viva
minha boca é o vórtice do silêncio
que precede a bebida

sexta-feira, 2 de maio de 2014

parasita

parasita divino
que vem ao meu vidro
vês ele?
é feito menino
feito filhote
demora a soltar o osso
na rua em que volto
eis tal parasita
amarelo miúdo
bicho infindo
sempre te noto