segunda-feira, 30 de março de 2020

autobiografia

os estojos acolchoados das ciganas vendedoras de joias,
na rua numerada do bairro numerado, mas este em francês
para a outra cigana cristã descobrir quantos filhos alguma mulher há de ter
com as poucas correntes de ouro que sobraram depois do penhor
colocam-me frente à maciez do perigo,
do que se forja em mente
o vermelho aveludado

viajamos, pois, quatro mil quilômetros sobre o asfalto
assistindo a todo o tráfico de animais
de pessoas
de buracos
e de frutas

não são cenas românticas,
houve duros conflitos, 
quando eu e minha irmã cabíamos no banco traseiro

e fazer parte da estrada faz parte da gente

prostituição e drogas fazem parte da estrada
o sertão dos estados do Nordeste faz parte da estrada
dormir sem saber se acordaríamos vivos faz parte da estrada
bactérias periorbitárias fazem parte da estrada
mijar no asfalto quente faz parte da estrada 
comer pão de queijo na parte atravessada das Geraes faz parte da estrada
dormir em Feira de Santana faz parte da estrada

(a Bahia inteira é grande parte da estrada)

para-choques de caminhão fazem parte da estrada
pneus dilacerados, freadas bruscas, capotamentos e grandes tempestades fazem parte da estrada
meus pais fazem parte da estrada
o cachorro, o tatu, as cobras mortas fazem parte da estrada
o asfalto, o calor e a irrigação das grandes plantações de cana fazem parte da estrada

eu faço parte da estrada

(a estrada faz parte da estrada)

se fecho os olhos, sinto ainda todos os cheiros:
do pé da minha irmã
da cana de açúcar 
da fumaça dos caminhões
e da carniça

e se ainda tento ir por alguma estrada
tudo isso volta como insurreição, pertencimento
e dívida

por isso descanso meus olhos não mais tremendo as retinas
ausento-me do piche e desta poesia
e sigo foragida