sábado, 30 de maio de 2020

diga-me o que lê
quando falo da estrada
e falo apenas disso
quando digo que acordo chorando com uma música

diga-me como me lê
quando passo distraída
dentro do caracol dos meus monstros
que sinto saudades
e revisito e me arrasto qual morador nativo

diga-me, então,
como não violar ferozmente a pele da minha boca 
no dia ante a estrada?
antes de todo sonho, a imagem
da água que ira o mar 
frente aos eminentes coqueiros do Atlântico
onde se embota a vista de um abutre
altura que protege a ave
até que o vento interrompa a sova das areias

nesta mesma paisagem, engendrar uma vida
e deixá-la secar tal qual os peixes 
parece possível

como um anjo, o filho se enrosca em caniços da lagoa
culpa de uma sorte lançada ao clarão
de uma paisagem de nuvens de estio 

há que se sonhar para encontrar o odor íntimo 
sem que se estraguem os dentes,
colecionando os cabelos que embranquecem das pontas à raiz 

há que se esquivar da lembrança do céu 
e despertar quando legítimo 

estrangular alguns ventres 
louvar a voz estridente
forçar o pigarro
e garantir a sucessão do inesperado 

há que se reconhecer o absurdo do muro
e da morte no asfalto

e não há mais nada,
só o luto