terça-feira, 13 de maio de 2014

Exatidão: Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, p. 72

"Por que me vem a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? Creio que meu pri­meiro impulso decorra de uma hipersensibilidade ou alergia pes­soal: a linguagem me parece sempre usada de modo aproxima­tivo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ou­ço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não di­go a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta. A literatura — quero dizer, aquela que responde a essas exigên­cias — é a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser. 

Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atin­gido a humanidade inteira em sua faculdade mais característi­ca, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da lingua­gem numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, co­mo um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fór­mulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significa­dos, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda cente­lha que crepite no encontro das palavras com novas circuns­tâncias.

Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epide­mia devam ser pesquisadas na política, na ideologia, na unifor­midade burocrática, na homogeneização dos m a s s - m e d i a ou na difusão acadêmica de uma cultura média. O que me interes­sa são as possibilidades de salvação. A literatura (e talvez so­mente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a ex­pansão desse flagelo lingüístico."

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