Ultimamente, tenho me sentido leve como se não fosse feito de carne e vísceras o meu interior. Etérea, cansada e sagrada, leve que não se pode deixar marcas e vincos nos gravetos, nos lençóis, e nem racham as telhas. As pernas não as sinto roçar uma na outra, como sempre foram, devido a minha configuração mais pesada. Não sinto meus braços apertarem o contorno do pescoço, o que não significa que não podem estar, de fato, apertando, pois assim sempre o foram. Mas não cedo tanto aos laxantes, apenas quando tenho cólicas. Fecho os olhos e H. coloca na minha boca um macarrão cru delicioso na cama, de onde também há dias não saio. São mesmo estes dias quando há de se convir que todas nós sabemos que não é possível fazer um lar sem proteção. É por isso que procuramos as construções feitas com a vista à nossa altura, por onde vemos as chaminés do Nordeste - para abrigar depósitos de cinco mil litros necessários a fim de abastecer de água as casas das pessoas. Também o local das antenas dos apartamentos conjugados, por onde algumas informações indesejadas costumam chegar, repleta dos logotipos que prometem uma velocidade incapaz de se cumprir. Não a natureza, porque é desconfortável. Tão desconfortável quanto ter de se mudar quando os vizinhos não cumprem a lei do silêncio.
Essa leveza não é sintomática para quem vê de fora, porque a reviravolta sempre acontece quando uma de nós morre de uma forma cruel nessa água toda. Um tropeço, um tiro, o veneno das crianças e o excesso de cuidado, que amofina nossos trejeitos. E porque moramos juntos, é difícil transitar com um passo firme, as barrigas se empurram quando resolvemos ser insuportáveis um com o outro. Crescemos e dobramos de tamanho quando nos empoleiramos. Nunca queiram ver o que se passa de noite quando vários de nós têm fome. Aconteceu que, em tal dia, algumas pombas vizinhas foram despejadas de casa. Vocês já olharam nos olhos de uma família despejada? Há algo de etéreo e cansado, além de sagrado e muito cínico. Isso acontece porque é preciso um determinado tempo para transitar sem rumo e sem ter para onde voltar depois de um dia longo. Também é nesse momento que o vaticínio se concretiza. Assim elas voaram por dois dias, com a cabeça sempre apontada para a antiga casa. Voando em grupos como que para assustar o homem que limpava a caixa d'água e aproveitava para estrangular uns filhotes, colocando-os no saco. O homem do saco é uma história real, eu mesma vi.
É uma festa para as crianças, no início, porque sair de casa é uma verdadeira aventura, mas que, neste caso, logo cansa e dá fome e as crianças não perdoam quando estão com fome. A criança despejada tem um quê de demoníaco e gostaria de ir embora com o primeiro que a oferecesse um pão com manteiga para, depois, acordar com remorso quando percebe que está entre estranhos. A criança, como um ser primordial, pensa primeiro em comida, depois pensa no sangue. O sangue é uma espécie de viagem longa demais para aguentar a intimidade do dia. É, portanto, impossível olhar nos olhos de uma criança despejada, não porque é insuportável, mas porque ele não olha para nada, apenas para o chão ou para o céu dos adultos atrás de comida. Você já olhou nos olhos de um adulto despejado? Nós, por aqui, duvidamos, porque eles estão sempre em busca de amparar os olhos das crianças e causar repúdio às pessoas com os papéis. E você já olhou nos olhos de uma pomba despejada? Oh! Não feche os olhos para isso. É desumano. Como é bom se sentir leve algum dia, como se estivesse esperando a morte a qualquer momento. Distraídas demais estamos.
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