sábado, 29 de maio de 2021

evocação

vou cantar a canção de Pã
Carlos Walker


o repentino assobio de tua flauta
reuniu todos os continentes
com o esforço de nascer novamente
    a rosa temporã

extraio o musgo, limpo os vestígios
entre as duas unhas do teu casco fendido,
encontro um canto limpo e forro com avencas
    a cama para descansar Pã

certa de que, para admitir tudo o mais,
conforme Wittgenstein,
basta que eu saiba que isto que se vê
    é obra de sua mão

segunda-feira, 24 de maio de 2021

o cego

nos arredores da rodoviária velha, o cego de bengala acompanha o piso tátil
    mas esta aqui é a pior cidade depois de aleppo, grita o cego, ao tropeçar na lajota que falta

sabe bem aonde quer chegar, este cego, mesmo sem reconhecer o desenho
    do número do transporte coletivo ou os círculos no chão para demarcar seu espaço seguro
e segue firme – uma firmeza não decodificada pela maioria vidente

eu te conto, cego, estás diante da poltrona 9 e os barulhos de pedras são por causa do piche fresco
    não te assustes com este profundo breu, a tua visão
tem alguém prostrado diante de você querendo entregar um santinho ou vendendo doces para criar o filho
    aceite por educação, cego, estende tua mão
estamos agora contornando o rio e faz uma luz alaranjada belíssima
todos os dias passo por aqui, cego, e à altura da pedra do rosário,
há algumas pessoas com estilo duvidoso, por isso nunca desci para ver de perto a água do rio dos camarões
    só vendo este tipo para reconhecer – desculpe, cego
chegamos ao cemitério, sabe quem está enterrado aqui? isso mesmo, café filho
    o cego é sabido

nunca te contei do sobressalto quando te vi tropeçar com aquela sonoplastia indecente das interjeições
    comparações agudas
nem do desencanto de viver apenas nos arredores – um torvelinho permanente
    o vicário dos sentidos ausentes

mas você deve saber, cego, que anoitece aqui, pois são as cigarras os sinos da anunciação
    lembre-se de aleppo antes das explosões – o elegante calcário cor de marfim ou
    os pisos limpíssimos e encerados que refletiam o céu sem nuvens
pois não há mais chance para se erguer da queda quando saltares deste ônibus, cego,
    já que agora sabes que a memória é teu único rumo nesta escuridão

segunda-feira, 10 de maio de 2021

tatuagem de andorinha

houve um tempo em que todos os tatuadores da cidade faziam uma média de dez andorinhas por dia
em braços, antebraços, ventres e colos daqueles que seguiam a moda old school
hoje militares treinam voo diariamente
descrevendo trajetórias de parábolas perfeitas
os filhos pródigos da nação
sobre o vale do Pitimbu 
com aquelas asas pesadas de metal
eles - salvo john wayne - nunca conseguirão atingir a desenvoltura da andorinha jovem
que despenca no vácuo
afoba um movimento de extensão das asas
outro de recolher junto ao corpo
alegre como só um jovem tatuado do início dos anos dois mil foi
straight edge 
que também despenca em outras incoerências 


domingo, 9 de maio de 2021

sob o signo do meu dente torto

há muito eles têm se incomodado

com a afronta: O meu dente torto

pois sobrevivem outros trinta e dois

obliterados por apenas um anjo torto


prontamente o que se esquece
para que se foque neste torto:
        
        chacina no jacarezinho
        explosões em cabul
        protestos na venezuela
        kumbh mela na índia

sob o signo deste meu ente torto
a sua aproximação com o nada

tem aparelhos ortodônticos
transparentes não precisa 
usar mais um freio de burro
não custa nada você ir lá no
dentista fulano é muito bom
ele cuida disso a estética só
precisa de um pouquinho né
de lidocaína e você não sen
te nada seu dente torto em 
seis meses fica bem certinho

distraio-me de todos
os conselhos
tem tocado a hard rain's a-gonna fall 
entre os dentes enormes do dylan
amarelos
do outro princípio da coca
pouco preocupado com todos
os anjos

inclusive
O meu