terça-feira, 31 de agosto de 2021

3x4 das boas mulheres da China

I
ser uma ótima mulher  
por inaugurar um novo jeito
de andar com o útero pênsil

II
sentir a mão de
Mao
na minha forja

III
conceber duas meninas 
subtraídas as duas 
pelas mãos de Mao 

IV
parir significa
nos cobrir de vermelho e
acordar para a revolução


domingo, 29 de agosto de 2021

ao som de "I'm going to make a cake", Philip Glass

nunca fiz um bolo, 
mas sei o nome de motocicletas –
estas que acompanham sua música
e irrompem a jusante até a água
chegar ao pescoço 

dentro da casa – o quarto
afogando julianne moore

à sombra, qualquer versão de mrs. dalloway
observa seu nariz adunco
a toalha pendurada, flor 
       na garrafa de vinho vazia
flor morta de aniversário 
       sem jarro 
recortes de papel 
       na geladeira
as cortinas preferidas e nunca lavadas

parede cinza, porta branca
maçaneta que trava chave & cópias
luzes – sombras 
       de todas as janelas

na casa, a casa –
o amor dormindo em segurança 
        a casa em segurança 
socorrista treinada que sou
não posso ver fogo

esta casa que também
        sou 
         é 
           fogo 

isto também é meu 
– mas que posso reivindicar
se toda a matéria
não rende loas
senão decanta?

sábado, 28 de agosto de 2021

 "A floresta perdeu seu silêncio" 
Davi Kopenawa

encontrar o silêncio 
experimentar o silêncio
        com a ponta dos dedos,
fazer cócegas no silêncio 

romper o silêncio não –
entender-se com o futuro


domingo, 22 de agosto de 2021

conversas com H. esperando o fim do mundo

I
– o mar está tão agitado, olha.
– você queria que o mar fosse quieto?
– eu não quero mudar o mar. e você?
– eu não quero mandar no mar.

II
– qual o nome você daria se este quarto de hotel fosse nossa comuna independente?
– wind gate. e você?
– wind gate me lembra o watergate, Nixon e anos 70, o punk e o conselho de cuidado para não cair na literatura.
– não sei do que você está falando. e qual nome, afinal, você daria?
– blue coast. parece um nome comum, talvez já exista.
– acredito que não, o pacífico é verde.

III
– eu ia dizer que você podia apagar a luz, 
mas não há nenhuma luz acesa.
– não, só a do mundo.

IV
– já está claro, mas eu queria ver o sol mesmo, não só a claridade.
– essa claridade é o nascer das nuvens.

(agosto, 2021)

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

aos urubus da Avenida Omar O'Grady

pescoço e cabeça nus de pele escura, desguarnecido,
          um urubu aguarda para ser recolhido do canteiro na avenida que atravessa a cidade
permanece um amontoado de penas negras há muitos dias na estrada vicinal de seu rasante

          mente sua etimologia ao simplificar coragem por abutre

que ele não tem pena de si, D. H Lawrence já enunciou, portanto sabemos 
é ele que se arma imenso sobre os postes muito altos e sustenta o céu 
faz o trabalho sujo sem o ônus da insalubridade

            e ainda ninguém os recolhe quando são eles a sujar e feder

o inquiridor escolar pergunta se há vermes que comem os urubus com seu olhar abominável

o professor faz sua paráfrase e responde que sim:
            os enganados da nação compram pedra por feijão, galinha por abutre
e pergunta retoricamente para seus aprendizes do nada:
            quem tem pena do pobre trigueiro que jaz com fome nas grandes avenidas? 

o silêncio,
este que é, sim, a última brita
pavimenta nossa ossada                 alçada

domingo, 1 de agosto de 2021

elegia para victor heringer

    diária exegese na capela
orando para que apareçam 
    os meus anjos da guarda
          ou os laboriosos fariseus
  a me punir por esquadrinhar
     vida pregressa de victor e
  descobrir que ele se foi
 a vinte dias dos seus trinta anos
    estando a vinte e três dias dos meus
                  ainda vivo; o verbo. não sei 
              onde, me parece o aqui 

sobram gestos e experimento a oração:
     creio na remissão dos pecados e
     na vida eterna, mas

aonde vai o rio depois que o perdemos 
     de vista?