quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Pedregulho

não existe mais pedra hoje em dia
me disse agora H.
pra que eu entenda que ninguém 
ninguém existe         mas nem os antigos
não nem — ninguém  ninguém 
mais conta histórias nem lacera os dedos  
estancando a fonte de sangue 
que escorre da pedra 


Mineral

assisto ao meu pai falando da bauxita
que aguenta as chamas 
de mil e setecentos graus celsius
enquanto aponta pros tijolos refratários 
da churrasqueira de casa alterando a voz
para o tom professoral conhecido

       distraído o raciocínio canto hoje
voltando do meu trabalho professoral 
o refrão 
do Pequeno Perfil de um Cidadão Comum 

não há outra chance de ser 
feito aquela gente
       comovida 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Hoje à noite

Para minha vó Primina (in memorian)

sinto o cheiro da minha vó 
talco, hidratante Nívea, Minancora
batom da Avon, perfume Natura 

quando morreu, foi um pouco para cada filha
o cheiro e as roupas
uma dezena delas que até chegou 
às netas, mesmo eu — que só a via 
a cada dois anos e não sabia bem o que falar 
diante dela

minha forma de mostrar deferência
era comer a salada de acelga até o final 
depois que todos terminavam
esperava que ela reparasse 

nesses dias, levei para lavar minhas roupas
na casa da minha mãe, que reconheceu 
as roupas da minha avó que eu uso
levou ao rosto e eu sabia 
que ali ela também sentia
aquele cheiro que hoje à noite 
vestindo minhas próprias roupas
eu também sinto 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Carinhoso

para o meu avô Rizzieri (in memorian)

oito de dezembro
mil novecentos e vinte e um
eu me lembro de quando era mais fácil
durante o primeiro navio
mas não quero voltar 
pelos filhos
pelo século 
tudo de novo
deixe-me recomeçar
em outro lugar
um lugar melhor
muito melhor
que a memória 

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Flamboyant

a um certo ângulo, quando sentada na cama, vejo uma árvore da qual desconheço sua morfologia e nome científico. sei dela porque a vi tantas vezes no caminho pro sertão; sob sua sombra, as vacas e os cavalos judiados. essa árvore está a uma larga distância, mas ainda a vejo numa área que é sempre verde, já que circunda o vale do rio. quando estou para morrer, me imagino sob aquela sombra, em silêncio e sem qualquer pessoa ao redor. isso não me consola por completo, afinal sempre há alguém olhando para longe. também não me consola porque penso nos bichos e eu não sou muito dada a comunhão com formigas. nesse momento também sempre me volta o telefonema do meu pai, quando soube que a pressão ultrapassou a rua, e diz que não deveria ter sido assim. que eu atropelei o que estava previsto para meu futuro, assumi coisas por demais precocemente. fico me indagando se entendi toda a lição de forma errônea, quando tantas vezes eles me contaram sobre coragem de ganhar a vida e me parecia tudo tão cedo, que até meus vinte e cinco anos soaram tardios quando tudo começou. sob essa árvore qualquer, num campo qualquer e provavelmente propriedade das forças armadas ou de algum coronel do interior que fez fortuna com a posse, eu queria voltar a escutar os conselhos dos meus pais sobre minha vida em decisões ou sobre apostar na loteria quando há mais chances. que tenho uma certa liberdade e dedicação que eles não puderam ter. poderia estar acumulando títulos emoldurados nas paredes, talvez iniciado uma editora decente, estaria dialogando nas universidades sobre qualquer coisa sobrecomum daquela linguagem pedante. mas a lição foi a de trabalhar, estava tão evidente. quando foi que este flamboyant foi descrito nos autos, real, pedagógico? com um nome, um destino, e o valor minguado do meu tempo?


 

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Róseo paravulcânico

quando se entorta o céu
decantar todas as partículas toma séculos 
então você se esquece de que qualquer destruição 
pode ser magenta 
e que disso não se criam artistas
antes coteja o sono dos justos 
a uma impinge  
porque da areia da praia ninguém sai ileso