segunda-feira, 23 de março de 2015

retratos de eunice e cândida

*  
eu me chamo Eunice, nome da vó de alguns amigos, nome que diz o que sou mais que o que faço: eunuco. sou fratura do mundo, mas a que carrega o karma do nome da vitoriosa hebraica, mãe de não-sei-quem do novo-testamento, musa dos protestantes. mas eunuco. nasci na índia, óbvio, e um dia ouvi que um jesus tinha falado de nós,  "Porque há eunucos que nasceram assim; e há eunucos que pelos homens foram feitos tais; e outros há que a si mesmos se fizeram eunucos por causa do reino dos céus. Quem pode aceitar isso, aceite-o.sou o feito pelos homens, esse mesmo, que dó. mas eu sou Eunice, anti-mãe, o alento-poço de um autor americano, que lia escondida pela madrugada fingindo ler o acaranga sutra [aqui eu posso produzir um riso mental em prol da santa ignorância]. quando tratar Eunice como uma outra, estarei demonstrando alguns ensinamentos de escritores que querem falar de si e sempre nomeiam seus personagens como seres alheios, como se não fossem eles próprios, [aqui também consigo sorrir com a capacidade infinita de ilusão do ser-humano]. Eunice tinha esse nome dado por seus pais que não sabiam o que significava, mas era o nome da vó ou da mãe de seus colegas. ela sempre teve essa coisa da maternidade, principalmente depois da orquidectomia, assumida mãe dos testículos jogados no lixo. Eunice era uma grande pensadora, de ascese com a vida e tinha constantemente aquelas ideias de carinho para com o dia final, as bênçãos dos pais aos filhos. usava umas roupas demais folgadas, mas isso dava a ela um ar de sábio, um ar de buda. ela conseguia rir, também, ao pensar em como as palavras quando graficamente parecidas a influenciavam, ela amava as orquídeas, aquelas principalmente que soltavam um cheiro de chocolate enquanto houvesse sol, ultimamente fazia muito sol boa parte do dia então era cheiro de chocolate por toda a casa. Eunice gostava de refletir sobre os homens e sobre os sonhos que tinha e das histórias que os homens inventavam para sair mais cedo do trabalho. e Eunice ri, se reacostuma com essa felicidade, percebe como pode ser tão feliz com essas miudezas, com essas coisas que ela ria mentalmente e ainda podia se achar infeliz, mas como, que injustiça com o mundo, pois. ela ria, de ilusão, de criatividade, de ignorância, do choque dos outros. então Eunice corria de se acabar, corria, ria, ia, ria do próprio cansaço, coisa que nunca tinha sentido, sentiu pela primeira vez. e nesse cansaço de bondade e compreensão, aconteceu o que ninguém poderia supor, um eunuco, um mutilado, correndo, se desfazendo e o seu suor, os pingos o rio o fundo: ela estava tentando um aborto sutil de suas ideias

*  
sabe, Cândida, pensei no seu nome durante tantos dias. te gerei, eduquei, cortei cabelos e unhas, brinquei de boneca mesmo detestando e tirei os pratos da mesa. agora, implorava ao cosmo para que você tivesse uma utilidade, para que você funcionasse. destarte, escrevi o teu nome e cá estás, tão Fátima, tão negra, nada delgada e, olhe pra ti, ousas usar um chapéu. antiquada. ah, Fátima, já és um fado, é tia de alguém, é árabe. a árabe cachaça, Cândida, que procura apagar com o gás do candeeiro a luz da candura do mundo, sim, Fátima é ocaso. fosco, da míngua ou da mágoa, Cândida alva do globo ocular. despistam-se uma da outra, embaralham-se os ais como se fosse para perder a mira fatídica d'uma e da outra. mas eis que não contam com o meu costume de desistir, de Terezar, ceder a intolerância própria do autor. esse autor que escreve, essa névoa que envolve Tereza, encapsulada no nome de Cândida, essa serventia que não é da casa. quem previne Cândida não toma café nem daime, quem a preserva é o destilado do povo que tem seu baço inteiro. Fátima, Cândida... é o orbe, o buraco mais embaixo, a perfeição da infecção. já se perdeu Tereza, tá de pileque e tem um encontro. coincidentemente, com a cantoria daquele setentrional ou septuagésimo. no natal, já terei esquecido, envelhecida e pobre, Cândida, que agora só tenho seu nome e que o autor vai esquecer. será Isabel, ou Laura no réveillon... ou Zuzá, outros sons precários, outras combinações silábicas, outros pratos na mesa e aquela boneca. essa boneca eu deixo a Fátima, porque... me perdoe, eu nunca a dei um nome. mas ainda posso sugerir um

*
(...) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário