terça-feira, 10 de novembro de 2020

foi noutra vida, decerto, quando
flanávamos por cafés,
você nem gostava, mas dizia que
        o illy não sei quê
        paris não sei quê
                                    sei, a outra

e eu implicava com o illy
                        com o cuore 
di panna
só para te provocar

certamente é nessa tal vida que seria 
agradável um banho em cinque terre

e eu posso até sentir seu frio
                                 seu medo
de cãibras

naquela vida que, decerto, existira
    abandonamos um gato

mas recolhemos uma rolinha 
e passamos calor para que ela chocasse seus ovos

(e ainda sonham com crianças para nós)

a apoteose dos dias que seguem
respeitam a métrica de
        tomar duas taças
        comer glúten &
        esperar cyberpunk 

mesmo assim acreditamos que há tempo para flanar,
ainda,

sob a lua dessa terra de sol

domingo, 25 de outubro de 2020

O Gênio dos Gênios


Filhas do Seridó oriental,

Rogo:

– Tranquem essas portas,

e não nos acordem enquanto não sejamos

de mal ou menos – pais de um filho

            apenas para escrever

        sobre este filho

 

Então pisaremos no último lajedo,

A ouvir     as     pragas

Vibrando as facas sobre as peles das palavras

            

                        Abra-se a derme:

                        extirpe o belo


Entregue a alma a quem te procura.

 

Quando vier a hora encarnada,

tiro a mirra, enfeito meu colo de alecrim e

sirvo o banquete

domingo, 18 de outubro de 2020

pérola negra

arranje algum sangue, escreva num pano
(Luiz Melodia)
I)
outros tempos,
aquela compressão no peito
desbravando rios do Norte

na bolsa, Steinbeck
e um colar para ela

II)
eis que o curso d'água muda
e leva todas as pedrinhas miudinhas -
jamais usadas escondidas
numa gaveta de calcinhas -
em uma corrente para o Baldo
 
e lá, a linha com os nós nas pérolas,
encaixado um terminal de rosca,
arranha o zigoma saliente e
pesa já tépida sobre o externo

só então a permissão de levar à boca
oprimindo a gengiva dos dentes ausentes 

III)
no pescoço - marcado
por brotoejas e sortilégios -
empertiga-se a dureza da pedra e,
contra o mar, devolve:

jamais esquecer este feitio de doçura 

terça-feira, 13 de outubro de 2020

quanto pode caber
em um simples corpo
o vácuo?

(há almas pairando)

luzes do que cremos um dia?
aquele ímpeto de jovem por esquecimento?

narrações de histórias trágicas na rede elétrica?
e as despedidas que interrompem os planos?

(ver a Ju casar
fazer tatuagem com a Ju
construir uma casa no meio do mato
U2 com a Ju)

como podem
estes corpos que passam
não se olharem - sempre em temor?

uns pesarosos de silêncios,
outros respirando melhor de bruços

represem o ar!
e leiam palavras sobre as coisas bonitas que ouço

deixe que venham
umas ideias de carinho, 
bênçãos &
roupas folgadas

bons augúrios ainda virão? 

terça-feira, 22 de setembro de 2020

a estrada paterna de segredos

é aberta a mãos de moça,

zona magnética de tuas partidas

é uma história içada pelo barco,

levada ao coração da floresta

onde se busca a riqueza dos homens

 

das aulas de francês, lembrava-se apenas do mar

e não lhe punha medo a maré cheia, o isopor no ombro, 

muito menos o ancestral sangrador

 

passou a medir o local dos minérios

que pigmentam os enxovais e os livros velhos

encadernados com tecidos de núpcias 

 

no caminho de volta,

confessou-se a um gerente de banco

e descobriu do que são feitas as gentes do comércio

 

os tigres da ira

pedem que não te desfigures,

que fiques a salvo do pólen 

e não receberemos mais as ciganas,

nem as curandeiras,

nem os trotes violentos

 

(eu poderia decorar A Montanha Mágica

para depois te mostrar

como respirar melhor

e prepararia qualquer prato ao thermidor

para te ver lambuzado e triste

nos dias dos teus anos)

 

prometo não brincar mais de Zila nas pedras,

nem catar o coentro da sopa,

nem olhar nos teus olhos

 

desfaço meus caminhos pelo piche,

não fumo mais teus cigarros escondido,

nem leio as histórias policiais

 

vigio para que tua pele não se descole

nem deixe de expelir esse óleo,

liga que fecha teus poros às alergias

 

mas reparas bem:

essa estrada margeada de palma e angelim

ainda não pode ser interditada

sem antes levar a Montmartre pela segunda vez,

ou às águas que te lavem a couraça de óxidos de titânio,

a tratar das manchas

 

e que tu escutes com teu ouvido direito:

há, que te acompanham, um espírito da floresta

e uma arribação de água salgada 

e eles anseiam por tocar,

com a leveza precisa,

em tuas mãos de moça


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

lagoa de extremoz

há, portanto, em cada canto deste mundo

a invenção 

nas porções de águas escuras e doces

tanto mais


aqui, por entre as ruínas da margem

dormem os olhos rutilantes

da píton-pagã


pobres incautos que buscam

suas bases no cálcio

porque nós, que aqui estamos,

por vós nunca esperamos 


ansiamos, sim, pelas jangadas,

numa vigília ao som do sermão de costas,

que, juntas, torçam os ossos as cobras


tracem as rotas desse comboio,

rumo ao grande hotel fechado,

e sonharemos a liberdade

terça-feira, 4 de agosto de 2020

julho ii

tentando manter um registro de pensamentos pós-leitura, porque senão me atropelo em enxaqueca, hoje finalizei Luanda, Lisboa, Paraíso - de Djaimilia Pereira de Almeida - com essa bela pintura na capa de Nelo Teixeira. a @quatrocincoum me apresentou o olhar de Djaimilia na coluna de crônicas de Portugal e, como encantada sempre pelo desacontecimento e pela banalidade do cotidiano, encontrei alguém que escrevia coisas que eu queria ter visto. visto daquela mesma maneira, porque é bem possível. este é um livro desolador, de enredo previsível e não falo isso como algo negativo, porque o que Djaimilia faz com a linguagem é uma coisa genial. me parece que, como um escultor em madeira, são visíveis as lascas de excesso sendo deixadas pelo caminho e essas farpas, o dito e o não-dito, penetram profundamente em nosso coração. o trabalho chega a tanto que tenho a impressão que em cada período, a cada ponto final, ela queria dizer algo. e diz, intensamente poética. hoje, chove com muito vento em Natal, o que conduz facilmente a gente a imaginar o frio e a solidão de Cartola, Aquiles, Pepe, Iuri, Glória, Justina, Neusa e a morte espreitando tudo isso.  quando o professor Dirceu Villa num curso da @acapivaracultural falou do poema em prosa de Baudelaire em Spleen de Paris, "Cada um com sua quimera", essa imagem se sobrepôs aos personagens do romance de Djaimilia. esse peso nas costas e a eterna sensação da espera. estão aí, também, o poema e o Baudelaire, melancólico como qualquer um neste domingo. bem, sejam quais forem as águas ou monstros que nos encarem, é preciso virar as costas para algumas ilusões e voltar pra casa.

sábado, 18 de julho de 2020

julho

há um episódio, na 2a temporada da adaptação da tetralogia napolitana, em que Lila está lendo no pátio do bairro acompanhada do seu filho. nesse momento, surge sua professora primária, a senhora Oliviero, quem outrora projetou esperanças sobre o futuro genial de Lila. neste encontro, a professora pergunta o que ela está lendo e a outra responde que é Ulysses. não o da Odisseia, mas o que fala sobre a vida prosaica. Oliviero pergunta se ela gosta e Lila responde que sim, mas que não está entendendo bem. nesse momento, a maestra diz que ela não deveria ler livros que não entende, porque não faz bem e elas engendram uma conversa triste. a história dessas amigas, Lila e Lenù, sempre me lembra Sílvia, minha amiga genial, com quem compartilho as delícias e amarguras de uma conexão profunda. eu não parabenizei Sílvia em seu aniversário, e isso me pesou a ponto de sonhar com ela nesta semana - um sonho emocionante - e tivemos uma breve conversa esclarecedora. lembrei desse episódio e de Sílvia em vários momentos em que lia Moby Dick. outra conversa que me lembrava constantemente é a que tinha tido com Hudson, quando ele me perguntou há um tempo se era difícil ler os clássicos. rapidamente respondi que não, que dizia mais respeito a disciplinar a leitura e persistir por horas ininterruptas. é como o maratonista, que treina acumulando os quilômetros. assim foi nos momentos em que aprendi sobre os cetáceos, sobre as leis e procedimentos de caça a baleias, a hierarquia nos navios baleeiros e os devaneios filosóficos do narrador (além do exercício de fazer vista grossa ao racismo). e assim, também, finalizei Moby Dick, com essa vista para o mar de outro dia em que estive diante dele. e como revela pouco antes da ruína do Pequod o capitão Ahab: "Porém, deixai-me antes lançar um olhar ao mar (...) Espetáculo velho, velho, e contudo tão novo. (...) É o mesmo... o mesmo para Noé e para mim. (...) Que vista maravilhosa!" Finis. o coração apertado não quer dizer o fim, mas o começo, pois estou viva, assim como Ismael e Moby Dick (e vocês, peixes presos e soltos que leram esse longo post na manhã de sábado, 18 de julho de 2020). isso pode ser um presságio.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

junho

fiz uma foto com livro, porque acho que esse é o meu melhor ângulo. jarid arraes conta histórias tão bem que retornei ao cariri e àquela estátua imensa do padim ciço, mas o mais mágico mesmo foi preencher as paisagens desconhecidas com o alecrim, o pitimbu, com apodi e o espanto dos redemoinhos em dias quentes em ambas as margens da BR 405. pensava que era um furacão, né, menina? saí do sofá e senti os meus pés queimando - era o sol que entrava pela janela e eu tentava permanecer, porque ouvi dizer que basta uma parte do corpo no sol para repor a vitamina d, acho que foi na TV. leiam jarid arraes, vejam menos TV, a luz azul esgota qualquer um. tirem fotos com livros. como não quero parar em casa, vou começar a ler moby dick porque soube que o melville escreveu em isolamento, com apenas um arpão ou uma âncora em cima de sua mesa, não lembro bem dos detalhes, foi matilde campilho quem contou. porque também revi pela milésima vez amélie poulain e só então reparei que o nome do peixinho suicida dela é cachalote. e tem a Bíblia. o wong kar-wai. o rodrigo campos. o júlio verne. dani. os vários fragmentos de um sub-bibliotecário de um sub-bibliotecário. e a educação infantil, quando essa baleia passou a permear meu imaginário. pois que eu possa chamar de Ismael o narrador que me espera. quero mais histórias, que tá pouco. ⚓

sábado, 20 de junho de 2020

reinventaram a linha do equador
e todos os meridianos foram deformados
pois há paredes infiltradas a qualquer hora

e a pensão dos vírus
tem este cheiro frio de cá

parece-me que os dias no trianon voltaram
aqueles de quando um bigode acumulava cinzas e delírios
quando também se lia bukowski até a madrugada achando o máximo
e espiava a rua vazia pela janela da cozinha
enquanto a primeira das mulheres murmurava seu rosário

reinventaram os detalhes:
a farmacinha do banheiro único
a clarabóia furada por onde escorre um fio de vento congelante
o tapete antiaderente
(os batons cintilantes, grampos dourados e a embalagem laranja de minâncora)

este cheiro frio
não é de cá:
veio migrando 
de roupas velhas e vícios acumulados
até esta linhagem que inventa teu nome mais longo

a geografia é afetiva
não mais que as marcas do um rosto que se lembra
sem plenitude do ângulo, sem olfato

oxímetro quebrado

há, então, que se pichar as linhas,
afiando suas pontas
e expulsar este odor do ausente,
borrifando para cima
balas de um sul quente

domingo, 14 de junho de 2020

maio p. 2

um dia exatamente igual ao outro.  alguns lampejos de outras ideias que não o tal microorganismo. a primeira veio domingo, ailton, o krenak que em 1987 pintou o rosto com tinta preta de jenipapo durante a assembleia constituinte – um vídeo que você provavelmente nunca viu –, com sua sabedoria ancestral, usou uma das metáforas mais interessantes que já ouvi: se você tem uma gaiola de porcos, não pode esperar o canto dos pássaros. fiquei atônita, enquanto o cientista e a repórter visivelmente não o escutavam. segunda-feira veio com a poeta de literatura pretística que perguntou por que nunca me autorizo/ autorizam a ser escritora, mesmo escrevendo há mais de dez anos. fiquei atônita e então escrevi alguns versos que não entendi. a terceira veio ontem, na fala de uma pessoa que compartilha suas leituras no youtube, eu estava procurando sobre j. joyce e ela disse assim sobre Ulysses: você tem que enfrentar esse livro como ele de fato é: um livro – objeto de leitura a ser iniciada e finalizada, não como um monstro. fiquei atônita e terminei de ler Retrato de um artista quando jovem. em algum momento o pensamento de Dedalus “era uma penumbra de dúvida e autodesconfiança, iluminado em certos momentos por clarões de intuição” e eu fiquei feliz com a coincidência. pelo caminho da piedade e do terror, tive muitos pesadelos que revelaram todos os meus medos - o cientista sidarta disse que qualquer sonho transforma a vida da pessoa e, claro, fui transformada. há que se lembrar do simples e como também o jovem Dedalus, “desejo apertar em meus braços o encantamento que ainda não veio ao mundo”. será isso possível? será que encontraremos finalmente os pássaros que cantam? ou o tal coração selvagem de Clarice? desculpa tantas perguntas, sou ainda muito jovem e tenho tempo para devaneios...

maio

a origem é hilda hilst, a não lida. houve um curso belíssimo, que seguiu com um exercício curativo de escrever um poema, partindo de algum verso dela da foto 2. escolhi "Há de marcar em fogo o mais vivo da pedra." fazia tempo que não me colocava à prova de comentários e considerações sobre algum poema meu. foi bom e gostei. corta. o livreto "três vezes hilda" ficou gratuito e eu queria ler cartas do caio fernando abreu a ela. dentre as maiores belezas, é narrado o dia em que ele conheceu clarice lispector. "ela é demais estranha" e, a meu ver, de uma doçura desconcertante. corta. voltei a assistir a entrevista que ocorreu 10 meses antes da morte de clarice, para atentar a tudo que não tinha visto ainda das outras tantas vezes. "não sou triste assim, é que hoje estou cansada", ela diz. tinha acabado de escrever a história de Macabéa e afirmou que, ali, estava morta e falava de seu túmulo. o entrevistador quer saber o título do livro, mas há 12 possíveis para A hora da estrela. eu amo profundamente a história de Macabéa. corta. faço menção à felicidade clandestina de ler um livro para comemorar o dia do livro. fim, só que não, porque o rótulo de escritora difícil turvou as humanidades. são mulheres, somos mulheres. somos todas pedra, língua e iniciação. como orides fontela, que também é difícil e aniversariou junto com hilda. é com ela que quero terminar essa tour:
"Se vens a uma terra estranha
 curva-te

se este lugar é esquisito
 curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te — és infinitamente mais estranho."

abril

30 dias de suspensão das aulas presenciais, mas essa foto foi depois de uma manhã de planejamento de atividades e aulas online, momento em que sempre sinto um vazio e uma insegurança imensa. não há nada romântico nessa adaptação ao home office. é difícil e muitas vezes insustentável, por isso tenho lido muito mais. lido o que me dá prazer, lido unicamente por prazer. fico prostrada no sofá por horas e costumo ter frio. Hudson sempre me traz o lençol e ontem ele disse que tava linda a cena: eu, a revista, as cortinas, a luz. pedi que registrasse e ele fez essa foto bonita, gostei. 30 dias que estamos muito próximos e cada vez mais íntimos, o que poderia ferir dois lobos solitários, mas ainda bem que não. conto pra ele tudo o que leio. ele me conta todo o enredo dos jogos de mundo aberto que joga. e me diz "chore não, mozina", quando percebe que tou usando minhas forças pra segurar o choro, pq sabe que sou dada à psicologia reversa e a ser teimosa. e eu choro. e me faz morrer de rir com as piadas e brincadeiras mais originais que já vi. 30 dias - acordei um pouco assombrada por todo esse tempo. sinto muito por tudo o que o mundo tá vivendo, mas agradeço todo dia pelo privilégio de continuar trabalhando, mesmo com a angústia; e por continuar bem, apesar de algum choro.

sábado, 13 de junho de 2020

irmão,
que terror sonhar contigo com blusa branca de algodão

(e porque é preciso esquecer
lhe cai bem a áurea)

vai-se para lá,
invenção

inferno de te ver em ouro,
irmão

sábado, 30 de maio de 2020

diga-me o que lê
quando falo da estrada
e falo apenas disso
quando digo que acordo chorando com uma música

diga-me como me lê
quando passo distraída
dentro do caracol dos meus monstros
que sinto saudades
e revisito e me arrasto qual morador nativo

diga-me, então,
como não violar ferozmente a pele da minha boca 
no dia ante a estrada?
antes de todo sonho, a imagem
da água que ira o mar 
frente aos eminentes coqueiros do Atlântico
onde se embota a vista de um abutre
altura que protege a ave
até que o vento interrompa a sova das areias

nesta mesma paisagem, engendrar uma vida
e deixá-la secar tal qual os peixes 
parece possível

como um anjo, o filho se enrosca em caniços da lagoa
culpa de uma sorte lançada ao clarão
de uma paisagem de nuvens de estio 

há que se sonhar para encontrar o odor íntimo 
sem que se estraguem os dentes,
colecionando os cabelos que embranquecem das pontas à raiz 

há que se esquivar da lembrança do céu 
e despertar quando legítimo 

estrangular alguns ventres 
louvar a voz estridente
forçar o pigarro
e garantir a sucessão do inesperado 

há que se reconhecer o absurdo do muro
e da morte no asfalto

e não há mais nada,
só o luto

quarta-feira, 22 de abril de 2020

"há de marcar em fogo o mais vivo da pedra" (hilda hilst)

a origem do mundo
passa pela iniciação de uma pedra
atrito e granito escritos
no breu das cavernas

mata-borrão para quê?
a sobra é o que cria

e este espírito atravessa o excesso
encarnado de luz e calor,
retalhando, feito cortes de papel,
a língua das madalenas

por qual fenda escorre, então, a palavra?
decisão de minerva

eu: pedra e língua
marcada pelo fogo
da descoberta

segunda-feira, 30 de março de 2020

autobiografia

os estojos acolchoados das ciganas vendedoras de joias,
na rua numerada do bairro numerado, mas este em francês
para a outra cigana cristã descobrir quantos filhos alguma mulher há de ter
com as poucas correntes de ouro que sobraram depois do penhor
colocam-me frente à maciez do perigo,
do que se forja em mente
o vermelho aveludado

viajamos, pois, quatro mil quilômetros sobre o asfalto
assistindo a todo o tráfico de animais
de pessoas
de buracos
e de frutas

não são cenas românticas,
houve duros conflitos, 
quando eu e minha irmã cabíamos no banco traseiro

e fazer parte da estrada faz parte da gente

prostituição e drogas fazem parte da estrada
o sertão dos estados do Nordeste faz parte da estrada
dormir sem saber se acordaríamos vivos faz parte da estrada
bactérias periorbitárias fazem parte da estrada
mijar no asfalto quente faz parte da estrada 
comer pão de queijo na parte atravessada das Geraes faz parte da estrada
dormir em Feira de Santana faz parte da estrada

(a Bahia inteira é grande parte da estrada)

para-choques de caminhão fazem parte da estrada
pneus dilacerados, freadas bruscas, capotamentos e grandes tempestades fazem parte da estrada
meus pais fazem parte da estrada
o cachorro, o tatu, as cobras mortas fazem parte da estrada
o asfalto, o calor e a irrigação das grandes plantações de cana fazem parte da estrada

eu faço parte da estrada

(a estrada faz parte da estrada)

se fecho os olhos, sinto ainda todos os cheiros:
do pé da minha irmã
da cana de açúcar 
da fumaça dos caminhões
e da carniça

e se ainda tento ir por alguma estrada
tudo isso volta como insurreição, pertencimento
e dívida

por isso descanso meus olhos não mais tremendo as retinas
ausento-me do piche e desta poesia
e sigo foragida

domingo, 16 de fevereiro de 2020

virgem

pesquiso
sobre todos que morrem e nascem
em vinte e quatro de agosto

abro o diário da mulher calada -
que não foi neste dia, mas quis bem antes de encarar as bocas gigantes, os planos violentos com rododendros, as traições, os filhos, a faculdade, os anos 50, o 'medo, feio & grande & lastimável', a técnica -
e existe o sono.
o sonho distante,
a genialidade,
o sono,
o metano,
o sono

[ah, sim:
Simone Weil
Getúlio Vargas
o cego Borges e o paulo Coelho]

mas a mulher caquética
acorda adoece pensa
no tempo-palavra enquanto me lembro:

*memórias 1
antes, o forno estralava pois a mãe costumava acendê-lo para afastar os gabirus
o canal do baldo não havia sido reformado
ratos gigantes eram caçados e mortos com vassouras e rodos, os sabres de meu pai
os bichos comiam nossa despensa e nossas portas, salvo a do último quarto, de metal, onde nos escondíamos

para além dos cabos de vassoura quebrados, o desafio era conceber que, antes do verbo,
roedores já estavam lá

*leituras
um dia, a mãe abriu o registro que libera a passagem daquilo que permite a combustão,
umedeceu panos e com eles bloqueou as frestas da porta do quarto de seus filhos

*memórias
tal qual a outra mãe fazia por conta dos ratos

entendo:
as mães têm suas artimanhas para que seus filhos
[não sejam acordados pelo gás inodoro
não sejam engolidos por um 'aborígene do lodo']
possam dormir em segurança