quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Parker Solar Probe

I
Nesse instante raro 
com uma forquilha, assamos milho
as gengivas doem até chegar ao ouvido
cheias de cascas entranhadas 

II
Das doze asanas, uma é alerta:
a mulher que olhar para suas coxas
no Adho Mukha 
terá de se explicar às outras

III
Em tempo de pestilência
instala-se no fundo da garganta
o gosto de alga marinha
daquele dia sem nuvens 

IV
Importará tudo isso 
quando tocarmos o Sol*




*
Tocamos a coroa do sol 
pelo menos três vezes 
e de nada adiantou o registro 
em preto e branco
o povo segue soberano
a intuir que o astro
tem a cor amarela
aquela que se escuta
na barriga


quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Caçadores

I'm not stopping
I'm going hunting
(Björk)

transitando entre a disciplina 
e o risco de vida
à sombra do cobogó da universidade 
ou polindo as armas
temo que isso seja a mesma coisa 

ainda ponho esses olhos gigantes 
sobre quem me revela segredos

não é possível que vejam isso 
nestes olhos tão pequenos
nem em meu corpo, que se mexe 
obediente na ginástica 

ainda mantenho os olhos gigantes 
de quem passa a entender

talvez reparem nesse movimento extenuado 
o meu principal disfarce
então é preciso manter os músculos rijos 
diante do espelho 
como quem aguenta a espera 
e o instinto para caçar carne fresca

ainda cresço esses olhos gigantes 
sobre qualquer presa distraída 

movem-se em mim todas as caçadoras
Diana, Diane di Prima, Lady Di 
quando atiço a voz de falar
ou a de dançar ao ricochete do peixe 
e neste corpo ensimesmado
tenho os mesmos olhos gigantes 

dos que cumprem o estabelecido 
ou que encaram
 a caça em delírio 

domingo, 5 de dezembro de 2021

Calor




cabeça quente, coração inflamado e estômago vazio:
todos os postigos da maior estrela escancarados para o sentinela

em cada pelo eriçado pela eletricidade do sonho e da calça de linho, a agulha fere o orgulho
arqueado em ritmo, de chapéu fedora, o sexo morto sempre andou a balançar-se em calças de estopa

carregar não sei o quê, não sei para onde — é isto que se entende por casa
e sonhar — que o sangue ralo, curtido no calor, é reduzido à exatidão do que se come

agora sabemos que jamais houve qualquer abrigo para a sombra
só não sabemos quando exangue, sem suor ou signo o sol abranda

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Fantasmas

voltar a ser visita na casa da família
é um exercício fundante para a distância 
e dormir naquele quarto que dividimos
eu e a minha irmã
com móveis de madeira de lei vindos do Norte 
e que até hoje resistem às intempéries,
ao mofo e às mudanças 
é a consumação da infância fantasma

pesadíssimos móveis:
- duas camas de solteiro
- um guarda-roupas de 2 portas e 4 gavetas 
- uma estante de quina com algumas prateleiras 
- uma mesa de cabeceira larga com uma gaveta

dividimos tudo isso por tempo suficiente 

na parte das portas, as calças jeans
roupas de festa
roupas de escola

na primeira gaveta, as calcinhas
as minhas ficavam no lado direito
no esquerdo, as da minha irmã
onde também surgiram primeiro os sutiãs

a segunda gaveta era da minha irmã 
a terceira gaveta era minha
a quarta gaveta sempre teve o puxador quebrado
costumávamos não abrir
em alguma delas,
enquanto sonâmbula, mijei

neste quarto também foi quando a vida se abriu
num feroz carrossel 
os pesadelos das irmãs ante as provas bimestrais 
os diários da minha irmã violados por mim
meus livros infantis revirados por aquela criança
esperançosa de se descobrir uma princesa 
e que hoje é um fantasma de si mesma

neste quarto também se fincaram as expressões de fé 
os diversos anjos de gesso que minha irmã colecionava 
ainda estão naquela estante de quina até hoje 
o pôster dos Beatles feito de vinil que não existe mais
alguns cofrinhos de quando tentávamos poupar
minha foto da formatura da alfabetização escondida também está lá 

nessa foto, eu encaro o fotógrafo como nunca mais encarei
com as unhas vermelhas aos seis anos
o batom de um róseo cintilante na boca 
e um adesivo vermelho na camisa 
colocado pela empresa de fotos
para saber qual criança fotografar 

naquele dia, eu já sabia que pagar um fotógrafo 
era
um esforço descomunal para minha mãe 
recém exonerada da folha de pagamentos da universidade

então encarei as lentes e sorri com dignidade 
para honrá-la
então fui a oradora e não gaguejei
para honrá-la 

ainda busco honrar a minha mãe 
em qualquer medida da minha vida
que se funda cada vez mais distante
daquela casa da nossa família

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Um garoto de fraldas

Um vídeo caseiro circulou hoje
nele há um garoto de fraldas e boné
em pleno pique difícil de se ver
não obstante, alguém de fraldas
ele sai em disparada para um caminhão
atira seu boné no chão 
e corre pro colo de seu pai
na legenda, algo como:
você não verá nada mais alegre hoje 

Pensei no garoto e em mim 
que estou sempre atrás, como diz Ana C,
de alguma coisa, talvez
da simplicidade mais erma
como o sentimento de uma criança
com saudade do pai
algo diferente de apenas compaixão 
uma conexão qualquer 
um entendimento banal 
sobre sentir o que foi registrado ali 

Molho a ponta dos dedos com saliva 
coisa que há tanto não se deve fazer
em função das eternas epidemias
mas há muito tempo e muitas crianças 
pelos quais sinto compaixão 
por isso mesmo espalho um pouco dessa saliva 
naquelas folhas que os acompanham para casa
e isso não tem sido tão simples assim
não ver nada tão alegre 
sem uma pontada de pena e dolo


sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Minha mãe sempre conta

Minha mãe sempre conta 
as mesmas histórias sobre mim:
que dormi durante as 24 horas 
depois que nasci
e que sempre pedia para mijar na estrada 
quando viajávamos de carro 

Essas são as melhores histórias sobre mim
disso não há dúvidas
porque antevi um sonho 
tal qual terá sido meu primeiro sonho
e procurei a amplidão da estrada
tal qual uma necessidade incontrolável 

Algumas décadas depois,
vejo quão acertada foi a decisão
de uma recém-nascida em dormir
depois de tudo aquilo  

E mesmo além de tudo aquilo,
a água só existe dentro 
para poder voltar para dentro 
de onde realmente importa: 
fora, a terra 
 ou outra água 
e por isso perdi as contas 
de quantas vezes já mijei na rua
e ainda mijaria
entre os carros
entre as portas dos carros
com a ajuda 
da minha mãe

para que ela continue contando 
minhas melhores histórias

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Quem não sabe onde a cidade começa
também não saberá encontrar a ribeira
abaixo do nível do mar e a praça vermelha
certa de que as ciências ocultas da natureza 

explicam por que não estamos, pois

com os olhos comidos por algum peixe

fossilizados entre nossos sentimentos


Quem não sabe onde a cidade termina

também não encontrará os ginásios 

ou o planalto entre vales e pistas militares

onde jovens patinam e competem

pelo título de mais moderno e arrojado

no alto da candelária, perto do DED

o Ciclope ainda não pode ser avistado


Bem sei dos estalos e da pressão

que anunciam para o ouvido médio

a apressada hora do trabalho

no entanto, talvez, e apenas talvez

se relaxarmos para o tempo do peixe mais antigo

será possível ver o Ciclope branquíssimo 

solitário entre as dunas onde nasce

o mesmo mar que, há anos, afogamos

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

os comunistas estão chegando

quando você pensa em vingança
imagina uma greve geral
escreve um poema na prisão

mas o repique é mais elegante
que rimar interventor com dor

      na faixa de pedestres
ela desfila sem máscara
no trajeto de passo ao paço 
      da pátria
sobe a ladeira da cidade alta 
para a parada do metropolitano 
             peito estufado sem olhar 
que há dois lados

     vagarosamente

nessa passarela que atravessa
ela atrasa 
o Grand Cherokee

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Sherwin-Williams

Sherwin-Williams
poderia ser uma atriz
de Ohio, pele diáfana 
cheia de veias 
varicosas e muito azuis 
sob uma meia 
de compressão 
para o sangue ralo
inteira cor-de-pele 
numa premiação 
de cinema independente
apareceria da Variety 
pela cor de seus vestidos
tantos quanto pudesse 
ainda assim Sherwin teria
varizes doloridas 
no fim do dia 
quando chegasse 
em casa e fosse acolhida
por suas cores únicas
e salgadas
nas paredes

mas essa é a história 
de dois homens de sucesso
não de uma mulher
solitária 

Todo santo ajuda

o santo ajuda a não cair no linóleo 
o santo ajuda a perguntar antes de lembrar
o santo ajuda a crise de fastio com os ossos
o santo ajuda a multiplicar 
       a cachaça 
       na calçada 

nisso o santo ajuda, então,
a encarar os olhos de Deus 
olhos de fogo dos lêmures

ambos bichos muito santos 
mas de semblantes bárbaros 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Ciborgue

quem dera ser um ciborgue
a acordar suada & sangrada
neste verão excelsior
sempiterno 
antimaterno 

sábado, 16 de outubro de 2021

Agave

No grito do vendedor ambulante, 
a não-memória do Baldo
— espanador e vassoura de agave

Se ouvimos vozes, é evidente que somos pequenos
e não nos lembramos do passado
nem ajudamos a limpar a casa

Ao entremeio de todas as vozes,
o micélio irromperá da terra 
para contar nossas verdadeiras histórias 

Neste momento oportuno,
o sol abanará o rabo

terça-feira, 12 de outubro de 2021

A nova beatnik

chegarão pelo estreito de Gibraltar 
os novíssimos pentecostais cortando chifres 
e pendurando etiquetas do futuro
aos pés dos pequenos sob as árvores 
os percevejos caem todas as setenta
e nove vezes na mesma frase em que 
se afirma ser o mundo onde jaz o maligno

chegarão os indigestos e as crianças 
os que contrariam todos os cismas

chegará a nova beatnik

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Danação

é pressuposto do sonho a ausência, a subserviência. o primeiro sonho do mamífero foi o pesadelo e quando te vejo, homem, sem a força de aguentar o trator que atravessou seu externo, delirante e dependente, no carrinho elétrico do supermercado, no andajá na casa sem varanda, eu penso que sonhas. privado da máquina do tempo, analfabeto, eu sei que gostas do tutano bem molinho com cuscuz e peixe frito. 

tens o pano de prato para enxugar a boca que não se fecha a dentes. o último dente para rasgar a carne. podre. extraído. banguelo não se acostuma com dentadura. Kariri não deveria jamais partir para outros currais. 

é amoral tomar café com xilitol e comer pão com manteiga ghee. é melhor morrer. não ser mais considerado porque o presente é um constante vácuo, o passado é afetivo, real. ser devoto de um não-santo. morrer antes da beatificação. antes de tudo, sonhar com Frei Damião. ninguém te escuta, nem aquele servo de Deus. nem Deus, tão amado. projete o gesto da cruz de nossa contrição, capuchinho.

nem os virgens te alucinam mais que o dinheiro, a quetiapina, outro sedativo. queria sonhar contigo. te convidar para cheirar acetona comigo, pôr vinagre no feijão. e o silêncio, esta importante avenida costeira, será nossa danação.


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Carranca

sustentada pela quilha de um navio etrusco
que irrompe no mar Tirreno
uma carranca carrega esperanças 

no destino, não deixa de falar muito 
com os cachorros como se eles entendessem

e entendem
perguntas muito complexas sobre a comida do dia
e de que maneira isso pode ser dividido para que todos
sobrevivam ao tempo da bonança 

checa os retrovisores mesmo sem conduzir o barco
olha tudo o que deixou para trás:
aquele continente pendurado 

chora escondida com tamanha careta no espelho
vê os tártaros se acumulando e as pálpebras inchadas 
tem noção do ridículo e mesmo assim 

chora

no banheiro

pega uma tesourinha de cortar unhas
que existe de enfeite já que as unhas se vão de outra forma 
algumas na pele que coça, outras no tecido que engancha, 
estas nos dentes tortos, 
ainda há as que se cansam e simplesmente
caem

covardemente, faz um pequeno corte na epiderme
com destreza metódica e o resto das unhas, vai abrindo
cutucando 
coçando
sentindo 
até que o vermelho surja dias depois 

talhada na madeira podre dos que jamais quiseram nascer,
a carranca segue espantando maledicências

reza o ato de contrição diante da luz vermelha de uma capela 
aquela que abre antes da fábrica


domingo, 3 de outubro de 2021

Folha

para Angela Quinto

andarilha andante transeunte contingente 
mambembe transitória efêmera móvel —
há que se encontrar o gentílico mais vivo

: caminhante

de grão em grão (& all
ela enche
um livro 


quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Ao som de "The earth is not a cold dead place", Explosions in the sky

para Hudson, como sempre

escovar os dentes para preparar o banho frio
lavar duas vezes todos os pelos para o receber
perfumar o caminho de patchouli para me anunciar 
descansar no meu esteio - nossa esteira; o teu peito 

Future butterfly

Na máquina do tempo, feita de aço e muito plástico, conta-se 17:10
fim do expediente de quem a manuseia conforme a terra fica para trás 
perto do Equador, isso significa que, em tal voltagem, já é quase breu 
um homem — meu Deus, era um homem —
aguarda sob a árvore, com sua mochila nos pés, e encara estes olhos 
através do vidro, do pátio da geração que necessita de mais um burocrata 
desacorçoado redigindo e aprovando obras de arte em editais 

são, ao mesmo tempo, horas diferentes a depender do motor e do músculo
mesmo assim as luzes se acendem, porque não mudamos os trópicos 
e não há nada mais forte que as lâmpadas de led histriônicas 
ou maior sombra que aquela árvore de quem espera desde o sol

no espelho convexo, aciono o incômodo — frente a minha própria imagem? 
na luz vermelha em excesso para o astigmatismo; a sensação idem
uma bruxa sentada sobre meu peito cansado
os caminhos abertos sob seu pé rachado

ambos de camisa polo, um rosa — como o céu no lusco-fusco
outro de branco, como as nuvens desesperançadas 
precisamos nos entender mas jamais conversaremos

a máquina me levou para o inalcançável — o futuro, este que não lhe pertence

        tampouco a qualquer um

sábado, 25 de setembro de 2021

Tanto tempo

Tanto tempo sem olhar através da janela
onde uma casa se ergueu
com a rapidez de uma fera faminta 
cujo destino não oferece opções 
flertando, então, com o buraco
e não reconhecendo 
a imagem ausente do espelho 
essa encáustica imagem 
do tempo sem tempo 
a história como ornamento

Tanto tempo encarando a fera 
moendo os miolos
cortando as unhas na carne 
comendo-as 
e regurgitando na boca
do vampiro 

Tanto tempo limpando a cara
mal-ajambrada dessa besta
inquebrantável 

sábado, 18 de setembro de 2021

Qualquer coisa católica demais

os vestígios da escrita primeira
impressos pela umidade
nas portas que já foram lenhos


        urdidura para xilemas 

        e outros dilemas da criação

        para Yeshua 


na via, a poda das árvores é maquinação

de vingança

e revela o maquiavélico gosto materno:

em segredo, corta-se

o cabelo do filho o mais curto

possível

inscrevem a brutalidade

na adolescência desidratada

dessas árvores da via

desses meninos imberbes


Elohim é a escrita do mistério

num tronco elástico morada dos insetos

vil teorema da destruição

maternidade

e correntão

domingo, 12 de setembro de 2021

Armistício

para os urubus de Muriú

na manhã de domingo
ver o mar a uma distância segura
assim também as pessoas 


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Gams

para Sandra Martins
talvez nunca percamos o jeito
de falar sobre tristeza 
mas os pregos, os papéis e as mãos 
marcam até a espessa pele
do leviatã

que dirá, então,
o nosso coração humano?

Ex-voto

evocar o meu corpo inteiro
depois de reparti-lo com as formigas
besta fera sagrada e metódica 
mas que não sabe de cor os Salmos

lâmpada para os meus pés é a tua palavra, formiga
líquens e percevejos continuam a sua comunicação

abrem caminhos ocultos,
trocam carícias 
onde encontro a língua dos vegetais

reescrevo o corpo
e ignoro a imagem 

a saliva das letras
é o meu ex-voto para todos os santos 
anônimos que crescem na terra
dessa liturgia medonha 
a vida


terça-feira, 31 de agosto de 2021

3x4 das boas mulheres da China

I
ser uma ótima mulher  
por inaugurar um novo jeito
de andar com o útero pênsil

II
sentir a mão de
Mao
na minha forja

III
conceber duas meninas 
subtraídas as duas 
pelas mãos de Mao 

IV
parir significa
nos cobrir de vermelho e
acordar para a revolução


domingo, 29 de agosto de 2021

ao som de "I'm going to make a cake", Philip Glass

nunca fiz um bolo, 
mas sei o nome de motocicletas –
estas que acompanham sua música
e irrompem a jusante até a água
chegar ao pescoço 

dentro da casa – o quarto
afogando julianne moore

à sombra, qualquer versão de mrs. dalloway
observa seu nariz adunco
a toalha pendurada, flor 
       na garrafa de vinho vazia
flor morta de aniversário 
       sem jarro 
recortes de papel 
       na geladeira
as cortinas preferidas e nunca lavadas

parede cinza, porta branca
maçaneta que trava chave & cópias
luzes – sombras 
       de todas as janelas

na casa, a casa –
o amor dormindo em segurança 
        a casa em segurança 
socorrista treinada que sou
não posso ver fogo

esta casa que também
        sou 
         é 
           fogo 

isto também é meu 
– mas que posso reivindicar
se toda a matéria
não rende loas
senão decanta?

sábado, 28 de agosto de 2021

 "A floresta perdeu seu silêncio" 
Davi Kopenawa

encontrar o silêncio 
experimentar o silêncio
        com a ponta dos dedos,
fazer cócegas no silêncio 

romper o silêncio não –
entender-se com o futuro


domingo, 22 de agosto de 2021

conversas com H. esperando o fim do mundo

I
– o mar está tão agitado, olha.
– você queria que o mar fosse quieto?
– eu não quero mudar o mar. e você?
– eu não quero mandar no mar.

II
– qual o nome você daria se este quarto de hotel fosse nossa comuna independente?
– wind gate. e você?
– wind gate me lembra o watergate, Nixon e anos 70, o punk e o conselho de cuidado para não cair na literatura.
– não sei do que você está falando. e qual nome, afinal, você daria?
– blue coast. parece um nome comum, talvez já exista.
– acredito que não, o pacífico é verde.

III
– eu ia dizer que você podia apagar a luz, 
mas não há nenhuma luz acesa.
– não, só a do mundo.

IV
– já está claro, mas eu queria ver o sol mesmo, não só a claridade.
– essa claridade é o nascer das nuvens.

(agosto, 2021)

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

aos urubus da Avenida Omar O'Grady

pescoço e cabeça nus de pele escura, desguarnecido,
          um urubu aguarda para ser recolhido do canteiro na avenida que atravessa a cidade
permanece um amontoado de penas negras há muitos dias na estrada vicinal de seu rasante

          mente sua etimologia ao simplificar coragem por abutre

que ele não tem pena de si, D. H Lawrence já enunciou, portanto sabemos 
é ele que se arma imenso sobre os postes muito altos e sustenta o céu 
faz o trabalho sujo sem o ônus da insalubridade

            e ainda ninguém os recolhe quando são eles a sujar e feder

o inquiridor escolar pergunta se há vermes que comem os urubus com seu olhar abominável

o professor faz sua paráfrase e responde que sim:
            os enganados da nação compram pedra por feijão, galinha por abutre
e pergunta retoricamente para seus aprendizes do nada:
            quem tem pena do pobre trigueiro que jaz com fome nas grandes avenidas? 

o silêncio,
este que é, sim, a última brita
pavimenta nossa ossada                 alçada

domingo, 1 de agosto de 2021

elegia para victor heringer

    diária exegese na capela
orando para que apareçam 
    os meus anjos da guarda
          ou os laboriosos fariseus
  a me punir por esquadrinhar
     vida pregressa de victor e
  descobrir que ele se foi
 a vinte dias dos seus trinta anos
    estando a vinte e três dias dos meus
                  ainda vivo; o verbo. não sei 
              onde, me parece o aqui 

sobram gestos e experimento a oração:
     creio na remissão dos pecados e
     na vida eterna, mas

aonde vai o rio depois que o perdemos 
     de vista? 

sexta-feira, 30 de julho de 2021

da visão

queria lhe contar das coincidências
ao atravessar, em fim de tarde 
no viaduto do baldo, o acendimento 
das luzes que pagamos, públicas
fotos do santuário de patti smith 
em rockaway beach, depois do tufão
as alamandas amarelas endêmicas 
a fazer sombra para a briga dos gatos de rua
que caçam os pássaros que entram nas casas
para comer a ração dos cachorros
o nível da maré, sem precisar das tábuas
porque existe o rio e ele me conta

mas o sorriso dos meus alunos
e o fascismo
me obrigam a usar este ponto final.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

decaimento beta inverso

em menção de H. H.

pobre neutrino
nos corpos densos e opacos 
aqueles que atravessamos sem qualquer notícia 
a buscar raros elementos de colisão 
e rutilâncias sagradas

numerosas atomia e anatomia 
do texto hermético 
é a química das coisas 
no detalhado fractal 
da existência de Deus

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Marcos

Marcos, se não tivesses ido
sei que terias os cabelos castanhos
caem os meus ao fabular se seriam anelados, 
grossos, finos, lisos, pesados ou teus

ou será que nascerias esguio, pequeno
com teu sangue compatível com a mãe
ou já sentirias o susto em cadeia de uma
injeção que te salvasse e a todos nós 

como não saber se tu tinhas
uma marca de nascença 
um gene para o astigmatismo 
um lábio leporino

com o que trabalharias, imagino 
professor, assim não eu precisaria ser

terias, sim, um excelente humor
uma excelente memória
para as músicas todas que aprenderíamos
e me explicarias o peso daquelas palavras

cuidarias de nossa mãe muito bem
ou deverias ao fisco

não te vimos em meio a todo o jorro quando
tu e nossa mãe num aeroporto em Fortaleza, 
feito eu, outrora no supermercado,
perderam-se um do outro 

vejo a ti, hoje
em uma árvore no canteiro 
nos homens sonhadores
na memória do fogo 

no mais, já te esqueci 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

epílogo

nas mãos em silêncio 
há muito o que se contar 
dos dias que virão 

a homilia se estica
para que você dobre o folheto 
em um fino tubo
encaixado entre seus pequenos 
dedos inchados 
no marco da aliança 

condição da ascese, o coro à Sant'Ana
doce, clemente, gloriosa 
abre as janelas 

procura uma costura, a areia, 
teu rosto nos amores 

a História
aberta à unha
de cor e salteado
hoje não cessa 

subscreve


segunda-feira, 5 de julho de 2021

estética da decepção

iguais a você, tantos
andam a lustrar a tez de 
um teórico com vinagres de
almíscar, têm nos olhos a 
arrogância precoce do título
e batem às portas por onde
entram tantos outros
iguais a você, tantos

quinta-feira, 1 de julho de 2021

chaminé da Cosern

à sombra da chaminé da Cosern
esta espécie de escape para a eletricidade
no fogo fátuo que ascende até perto das folhas das sete-copas 
nossos desvalidos esquentam as mãos
mesmo equilibrando-se sob os trópicos
porque toda noite é fria quando se está na rua

nossos desvalidos têm seu Calabar
que, sob o pretexto de segurança, segue varrendo 
as cinzas das calçadas sem dar conta de que não pode esconder
o sangue quente das muriçocas
o chão de quem se deita
o fogo de quem o pertence


sábado, 29 de maio de 2021

evocação

vou cantar a canção de Pã
Carlos Walker


o repentino assobio de tua flauta
reuniu todos os continentes
com o esforço de nascer novamente
    a rosa temporã

extraio o musgo, limpo os vestígios
entre as duas unhas do teu casco fendido,
encontro um canto limpo e forro com avencas
    a cama para descansar Pã

certa de que, para admitir tudo o mais,
conforme Wittgenstein,
basta que eu saiba que isto que se vê
    é obra de sua mão

segunda-feira, 24 de maio de 2021

o cego

nos arredores da rodoviária velha, o cego de bengala acompanha o piso tátil
    mas esta aqui é a pior cidade depois de aleppo, grita o cego, ao tropeçar na lajota que falta

sabe bem aonde quer chegar, este cego, mesmo sem reconhecer o desenho
    do número do transporte coletivo ou os círculos no chão para demarcar seu espaço seguro
e segue firme – uma firmeza não decodificada pela maioria vidente

eu te conto, cego, estás diante da poltrona 9 e os barulhos de pedras são por causa do piche fresco
    não te assustes com este profundo breu, a tua visão
tem alguém prostrado diante de você querendo entregar um santinho ou vendendo doces para criar o filho
    aceite por educação, cego, estende tua mão
estamos agora contornando o rio e faz uma luz alaranjada belíssima
todos os dias passo por aqui, cego, e à altura da pedra do rosário,
há algumas pessoas com estilo duvidoso, por isso nunca desci para ver de perto a água do rio dos camarões
    só vendo este tipo para reconhecer – desculpe, cego
chegamos ao cemitério, sabe quem está enterrado aqui? isso mesmo, café filho
    o cego é sabido

nunca te contei do sobressalto quando te vi tropeçar com aquela sonoplastia indecente das interjeições
    comparações agudas
nem do desencanto de viver apenas nos arredores – um torvelinho permanente
    o vicário dos sentidos ausentes

mas você deve saber, cego, que anoitece aqui, pois são as cigarras os sinos da anunciação
    lembre-se de aleppo antes das explosões – o elegante calcário cor de marfim ou
    os pisos limpíssimos e encerados que refletiam o céu sem nuvens
pois não há mais chance para se erguer da queda quando saltares deste ônibus, cego,
    já que agora sabes que a memória é teu único rumo nesta escuridão

segunda-feira, 10 de maio de 2021

tatuagem de andorinha

houve um tempo em que todos os tatuadores da cidade faziam uma média de dez andorinhas por dia
em braços, antebraços, ventres e colos daqueles que seguiam a moda old school
hoje militares treinam voo diariamente
descrevendo trajetórias de parábolas perfeitas
os filhos pródigos da nação
sobre o vale do Pitimbu 
com aquelas asas pesadas de metal
eles - salvo john wayne - nunca conseguirão atingir a desenvoltura da andorinha jovem
que despenca no vácuo
afoba um movimento de extensão das asas
outro de recolher junto ao corpo
alegre como só um jovem tatuado do início dos anos dois mil foi
straight edge 
que também despenca em outras incoerências 


domingo, 9 de maio de 2021

sob o signo do meu dente torto

há muito eles têm se incomodado

com a afronta: O meu dente torto

pois sobrevivem outros trinta e dois

obliterados por apenas um anjo torto


prontamente o que se esquece
para que se foque neste torto:
        
        chacina no jacarezinho
        explosões em cabul
        protestos na venezuela
        kumbh mela na índia

sob o signo deste meu ente torto
a sua aproximação com o nada

tem aparelhos ortodônticos
transparentes não precisa 
usar mais um freio de burro
não custa nada você ir lá no
dentista fulano é muito bom
ele cuida disso a estética só
precisa de um pouquinho né
de lidocaína e você não sen
te nada seu dente torto em 
seis meses fica bem certinho

distraio-me de todos
os conselhos
tem tocado a hard rain's a-gonna fall 
entre os dentes enormes do dylan
amarelos
do outro princípio da coca
pouco preocupado com todos
os anjos

inclusive
O meu

quinta-feira, 29 de abril de 2021

poema ruim para Ferlinghetti

não dá para acompanhar todos os lançamentos músico-lítero-cinematográficos
ainda que estas sejam as coisas mais importantes da vida depois de acordar
porque as coxas do tempo se atrofiam a saber 
dos atrasos no trabalho
dos sonhos com o trabalho
do trânsito para o trabalho
do nó nas tripas pago ao banco
da colher de doce depois do almoço que aplaca 
o cansaço intermitente pela distimia não diagnosticada por um médico
mas por um burocrata do cartório que escreve com a sua máquina de escrever BRASILEIRA e da letra tosca dos recursos humanos que completa a sentença PROFESSORA 
não dá para acompanhar a raiva de uma poesia que me assalta e me rouba os cabelos
mas as mãos estão sempre tão ocupadas
que não dá ainda mais para erguê-las
como rendição ou charme 
de jogar esta mecha desidratada presa suja
que entope os ralos que eu mesma limpo com o nojo de manusear algo morto
tão morto
que não dá para não querer
vomitar
uma palavra que se salve deste mundo 


terça-feira, 27 de abril de 2021

outras crises para Mallarmé



a crise do gigante é o verso

sua mão

orquestração de mil gritos


o encantamento falso

do verso         certo


polimorfo prazer que aí se reitera

em disjunção livre e simples

dos elementos


forjador,

toda alma durará

e nada é proferido sem antes ser


o dizer é a melodia do sonho

e o prazer no grito do gigante


abre-te ao teu hemistíquio:

— o nada

quarta-feira, 21 de abril de 2021

O despejo das pombas

    Ultimamente, tenho me sentido leve como se não fosse feito de carne e vísceras o meu interior. Etérea, cansada e sagrada, leve que não se pode deixar marcas e vincos nos gravetos, nos lençóis, e nem racham as telhas. As pernas não as sinto roçar uma na outra, como sempre foram, devido a minha configuração mais pesada. Não sinto meus braços apertarem o contorno do pescoço, o que não significa que não podem estar, de fato, apertando, pois assim sempre o foram. Mas não cedo tanto aos laxantes, apenas quando tenho cólicas. Fecho os olhos e H. coloca na minha boca um macarrão cru delicioso na cama, de onde também há dias não saio. São mesmo estes dias quando há de se convir que todas nós sabemos que não é possível fazer um lar sem proteção. É por isso que procuramos as construções feitas com a vista à nossa altura, por onde vemos as chaminés do Nordeste - para abrigar depósitos de cinco mil litros necessários a fim de abastecer de água as casas das pessoas. Também o local das antenas dos apartamentos conjugados, por onde algumas informações indesejadas costumam chegar, repleta dos logotipos que prometem uma velocidade incapaz de se cumprir. Não a natureza, porque é desconfortável. Tão desconfortável quanto ter de se mudar quando os vizinhos não cumprem a lei do silêncio. 

    Essa leveza não é sintomática para quem vê de fora, porque a reviravolta sempre acontece quando uma de nós morre de uma forma cruel nessa água toda. Um tropeço, um tiro, o veneno das crianças e o excesso de cuidado, que amofina nossos trejeitos. E porque moramos juntos, é difícil transitar com um passo firme, as barrigas se empurram quando resolvemos ser insuportáveis um com o outro. Crescemos e dobramos de tamanho quando nos empoleiramos. Nunca queiram ver o que se passa de noite quando vários de nós têm fome. Aconteceu que, em tal dia, algumas pombas vizinhas foram despejadas de casa. Vocês já olharam nos olhos de uma família despejada? Há algo de etéreo e cansado, além de sagrado e muito cínico. Isso acontece porque é preciso um determinado tempo para transitar sem rumo e sem ter para onde voltar depois de um dia longo. Também é nesse momento que o vaticínio se concretiza. Assim elas voaram por dois dias, com a cabeça sempre apontada para a antiga casa. Voando em grupos como que para assustar o homem que limpava a caixa d'água e aproveitava para estrangular uns filhotes, colocando-os no saco. O homem do saco é uma história real, eu mesma vi.

    É uma festa para as crianças, no início, porque sair de casa é uma verdadeira aventura, mas que, neste caso, logo cansa e dá fome e as crianças não perdoam quando estão com fome. A criança despejada tem um quê de demoníaco e gostaria de ir embora com o primeiro que a oferecesse um pão com manteiga para, depois, acordar com remorso quando percebe que está entre estranhos. A criança, como um ser primordial, pensa primeiro em comida, depois pensa no sangue. O sangue é uma espécie de viagem longa demais para aguentar a intimidade do dia. É, portanto, impossível olhar nos olhos de uma criança despejada, não porque é insuportável, mas porque ele não olha para nada, apenas para o chão ou para o céu dos adultos atrás de comida. Você já olhou nos olhos de um adulto despejado? Nós, por aqui, duvidamos, porque eles estão sempre em busca de amparar os olhos das crianças e causar repúdio às pessoas com os papéis. E você já olhou nos olhos de uma pomba despejada? Oh! Não feche os olhos para isso. É desumano. Como é bom se sentir leve algum dia, como se estivesse esperando a morte a qualquer momento. Distraídas demais estamos.

pessoas não são feitas
para usar fones de ouvido

nestes cursos online

    cursos     online
c ur    sos o n       line
cu r s o    s     on l i n    e

é preciso atiçar os tímpanos
com um plástico
para viver o tempo 
do cyberpunk

domingo, 18 de abril de 2021

Memórias do subsolo

    Ler 120 páginas do Dostoiévski, "Memórias do subsolo", mas, antes disso, adormecer com o livro aberto e continuar preenchendo a narrativa de olhos fechados de tão afundada na história que se pode chegar. "Sempre terei o subsolo" é um verdadeiro consolo, porque quando dou por vista, já me lembro de um garoto chamado Júlio César, com a barriga proeminente e poucos cabelos na cabeça, como agora já me parece meu aluno (e provavelmente sejam as mesmas pessoas infames nos anos iniciais de colégio) que pôs um pé para que eu mergulhasse diretamente ao chão quando eu tinha por volta de 7 ou 8 anos. Neste dia, eu me dispus a ir buscar o som para a professora, que colocaria alguma música para que nós ouvíssemos.

    Tão rápido quanto caí, levantei-me e fui engolindo um choro dolososo por conta da fratura que se fez em um dos meus dedos da mão. Busquei o som, por uma questão de honra muito forte que sempre tive e voltei à sala, ainda com muita dor. Mas não há honra na dor e logo me pus a chorar, quando vi que meu dedo assumia um tom roxo e aspecto inchado, a ponto de não ser possível mais flexioná-lo. Assim foi a minha primeira e penúltima fratura no dedo, sendo necessária uma camada de gesso e muito esparadrapo e gaze.

    Também lembro do cheiro da minha mão depois de retirar o gesso, um odor adocicado e úmido de algo há muito guardado, e a textura da minha pele, que mais parecia uma esponja e ainda não era totalmente possível fechar a mão em um murro que sempre foi o meu grande sonho poder dar em alguém. O que me serviu para aprender sobre a dor e sobre a honra, pois, anos depois, em um dia de treino de esporte, ainda na escola, desta vez não foi o pé de nenhum algoz, mas aquela coisa desumana que é uma bola de vôlei, em conluio com o erro do tempo. Desta vez eu já sabia manipular a dor e imobilizar o dedo, o que fiz com palitos de picolé e algum esparadrapo que havia guardado em casa. A dor não cessou por dias, precisando, novamente, que a honra fosse junto ao esgoto do consultório de um médico ortopedista.

    Dessa última fratura, considero uma vitória aleijada, já que havia se passado tantos dias desde que ocorrera, que o osso fraturado se calcificara sobre o outro, formando um todo para sempre inchado. Um caroço no meu dedo e assim vivo até hoje. E este dedo dói sempre que chove, o que me lembra que "nasci sem nojo da dor", como diz Clarice Lispector. A mão do murro hoje já consegue se fechar, apesar de continuar vazio o alvo, não a vontade.


quarta-feira, 7 de abril de 2021

Sílvia,

 I

Lívida, você acorda com o cordão de prata arrebentado e olhos inchados de alergia. É possível ser, em parte, a poeira do roçar da nuvem, o concreto armado, o ranço. Presa à maçaneta de uma porta, de metal frio e grudento, a mosca é atraída pelo cheiro de suor e abandono. É possível, então, acordar desta maneira? Esfregando as patinhas sem cerimônia? O olhar estreito, o olhar deformado. O caleidoscópio. 

Na ciclovia, o bebê sustenta um olhar para mim, este que já tem seu método, não olhar para corajosos. A maçaneta fria e grudenta tira pequenas lascas de pele morta que se deve deixar de rastro. Digitais, em todo caso. Da mosca, não. Suas palavrinhas são emplastros, moldam-se à pele ferida, tatuada. Gritinhos, ou o barulho de ovo fritando. Experimente escutar o ovo gritando. Ou a vocalização de uma surdez profunda. Experimente aceitar o silêncio. Nessa mão que segura o bebê e a lembrança do cigarro, lê-se o método. Como se desconjuntar. Como ajeitar os dentes para conceder a imagem. Como tingir o cabelo para enfrentar o tédio. 

Não se desperta desta maneira, ora numa cama, ora no impossível. A mosca atrai o sapo, que vem da chuva. Assim contam a história, com um beijo ou um canto. Assim conta tua história, sem aplacar as forças da natureza. Assim desperta das camadas de sono e da filosofia moderna. Assim sabe o que escondem os vazios, como se ganha uma guerra. Este é o caminho. Todos fingem, menos você. Lúcida, mastiga o anti-histamínico para alcançar o amargo. Encontra a palavra. 


II


Coleção de palavras desconhecidas. Escutaste o grito com teus airpods? Quando aquele ovo se estatelara ao chão, enche-se a boca de saliva grossa. Metros de papel higiênico para aplacar aquele cheiro amarelo e translúcido. Tanto trabalho para recolher e, ainda, toda a saliva se acumulando aos montes. Bíle. Um escarro esquisito.

Prontamente acorda de um sonho familiar. A casa da avó já morta, que há muito não lembrava de si. O gramado com bosta de animais concretado. Como as pontes e a praticidade de se fazer de âmbar para a posteridade. Pobres famílias que economizam os jazigos graças aos queridos empreiteiros. Mas ainda há as cortinas, aquelas janelas-portas. As cortinas brancas e bordadas.

Mesmo o familiar mais absurdo tem o tino para a arte. Jardinagem, reciclagem. Trocadilhos infames, ou nanquim em papel. Futebol, bebedeira, ciganismo, didática. Este léxico de quem sonha em outra língua, mesmo sem saber outra língua, revela tamanho tino. É preciso chorar diante do gato atropelado. É preciso viajar mensalmente para outra cidade para manter o segredo. Prazer - isto não é necessário.


III


      O que é a vida, senão acordar? Lembras daquele filme do Richard Linklater, cujas conversas vão desvendando um profundo despertar, ainda que este jamais aconteça? É que sonhar me parece como patinar num limo qualquer, verde de lodo ou de pus. Renunciar a qualquer biogênese, desentender-se com o mistério, visto que sempre haverá este tempo de cambalear, roncar, espasmar, morrer sem dor.

            Eis tua vida, a mim cabe imaginar. Fazer de mosaico, dar o tom da imaginação e da denúncia. Como acordar sob o teto de um desconhecido? Superar a vergonha, os cheiros, a universidade, o filho, a noite, as infecções, os quarenta gatos, o homem seboso, a memória da avó, o empenho para o nada, o professor, o pesadelo. Reivindicar todos estes sentidos, o vento egóico, a técnica, as ruínas. 

              Despersonalizo. Como o sonho, o tempo embica sua engrenagem para as margens, como este atual congestionamento no canal de Suez. No corredor da escola, me vejo de cima. Também na cama, na cozinha, no piche, segurando um volante, é reto o caminho. As pedras do canteiro da Avenida Omar O'Grady ainda estão quebradas diante da lembrança dos cachos sem vida. Horário marcado no salão, janela, colisão. As pedras daquele canteiro seguem deitadas, ninguém do Rotary se solidarizou com as pedras. Ninguém do Rotary a conheceu.


IV


Vaticino as chagas de Cristo. Ontem, cortei-me com uma faca, justo no braço que sinto coçar pelo traço reto, por onde, também, já esfreguei uma faca cega. Fé amolada. Rezar todos os dias quantos padres-nossos forem necessários para iniciar uma aula, lembrar de cada partezinha que me parece errada demais, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. E outras partezinhas tão certinhas, perdoai as nossas ofensas assim como nós não perdoamos a quem nos tem ofendido nos deixei cair em tentação não nos livre de todo o mal. Eu peço clemência.

As pontas dos meus dedos estão dormentes. Lembro, no ensino médio, de pedir para as pessoas puxarem minhas mãos, com mais força que puderem. Hoje, sei que já era a despersonalização. Amanheço assim e me pergunto como acontece com você. Já acordou assim, com alguma parte do corpo dormente, ou só com os gritinhos, só com o desconhecido? Lembra do réveillon, Lila e Lenu no terraço. Lembra Lila sendo arremeçada pela janela por seu pai? Os bichinhos vermelhinhos a acolhendo como um em um manto sagrado? Os tiros e o horror da humanidade? A ausência de margens, o tremor, a dormência. Não durma ainda.

Eu realmente queria que você já tivesse sentido isso, Sílvia, porque eu sei que sentiu.